Terça-feira, 25 de Maio de 2010
Fugi dessa casa por construir
e hoje tenho os dedos amarelos de pensar porquê.
Fui sem querer.
Onde o vento era, aí estava eu em lugar algum,
como se fosse
ou conseguisses pensar-me, ver-me sem medo,
assim pendurado na varanda das noites.
Quarta-feira, 17 de Março de 2010
Eis que o tempo se oculta nesses lábios onde os pássaros mordem.
Retenho deles uma palavra em surdina que permanece,
húmida e respirada, odorífica e doce.
Por dizer descansam as certezas.
Hoje foste sal em ervas frescas, o corpo entregue feito carta.
Respondi-te assim, com a calma dos loucos:
Virá em breve essa primeira tarde, inteira e ofuscante.
Nesse dia a nossa música antiga tocará. E eu em ti.
Quarta-feira, 11 de Novembro de 2009
Dias de bronze.
Sons que pingam e sombras vermelhas.
Todos vivemos horas que nos atravessam
de tão ausentes, na inflexível soturnidade.
A poeira regressa.
Memórias nas suas mãos, fragmentos de riso
e beijos de chocolate em postais vindos de perto.
Palavras como "lembras-te" e "faz hoje anos que".
Avançar o tempo.
Acontecer o mistério e esse tempo parar
ou pelo menos ter o sabor de uma praia.
Dizer assim: "Agora fico aqui". E ser verdade.
Quinta-feira, 15 de Outubro de 2009
Esta é a última escala do amor e em dia de vento percorrida.
Cada viagem desenha o seu próprio sonho,
marca a firme impressão dos dedos em cada largada.
Fosse o meu desejo veloz e longo, um comboio nocturno
ou um navio antigo, desses cujo vapor aquecia à distância
os amantes imóveis, abraçados em cais de madeira escura.
Esta viagem tem apenas um nome e é o teu, sílabas de Outono.
Segunda-feira, 2 de Fevereiro de 2009
Entre todos os gestos por levitar
um existe que aproxima do céu,
que eleva e queima na passagem
como fogueira de Junho.
Quando trocamos de tempo,
distendes os braços em forma de gato
e a luz reveste de mercúrio a tua pele,
com memórias futuras a semeia,
pão de Páscoa.
Então subo por ti adentro e vou.
Fresca é essa vida que celebras
em língua desconhecida,
solar a tarde que paira sobre a cidade
com anjos nos seus degraus.
O amor uma palavra pequena.
Segunda-feira, 19 de Janeiro de 2009
Qual o maior de todos os segredos,
o modo invisível de viver-te?
Há no meio da cidade um jardim e estátuas decapitadas.
Aí os abraços partilham a lucidez do tempo, alongam-se
nas sombras impossíveis do meio-dia.
Quando não falo, sabes o que quero dizer-te. Sempre
as mãos em fogo,
longas e vorazes,
exactas e vivas.
Há dias sem ar e outros em que te respiro. São os mesmos.
De casa em casa, transporto a tua ausência em caixotes vazios.
É o mais misterioso dos mistérios, este que apenas pressinto
na íntima indiferença das estátuas sem cabeça,
nos seus impávidos olhos abertos .
Que sinto em ti, quando partes, ainda ofegante de silêncio.
Segunda-feira, 12 de Janeiro de 2009
Temo que não exista essa glória que aguardo,
à sombra das palavras oscilantes.
Na antecâmara dos que esperam, apenas o eco de murmúrios
vindos de qualquer dentro por nomear.
Ergo-me na proa de um navio que se desfaz a cada golpe de azul
e o Sol reflecte o duro fulgor dos metais,
sente-se na língua.
Algumas frases são lâminas e outras pedaços de fruta.
Muitas ferem, poucas assemelham-se a olhos de criança.
Sexta-feira, 9 de Janeiro de 2009
Nunca conheci Alexandria ou o contorno dos seus olhos.
Este mar que sussurra desígnios imensos é para mim inacessível
e cobardes são as viagens quando terminam nos teus braços.
O corpo não parte sem o desejo. Assim, torno-me sábio do que tenho.
Que outros sejam os guerreiros da cidade, os reis de longe.
Alexandria é apenas o destino.
Segunda-feira, 5 de Janeiro de 2009
Concluí pela cama atravessada na garganta, hoje que chove foge-me a memória
até onde quer que nasçam as romãs.
Não é necessário tocar-te,
apenas abrir a porta
deixar entrar os animais que a noite soltou desamparados e os restos,
o que sobra nos ossos entre as pedras, malsã daninha.
Agarro como a um livro a tua pele carcomida pelos bichinhos de prata,
saboreio-a com a língua morta e o que digo nem eu entendo, quanto mais.