Parece fácil falar de amor
E há outros temas bem mais urgentes
planeta a sufocar, crises emergentes
o mar a subir, o excesso de calor
Pensar nas paixões, quis eu supor
daria versos pouco exigentes
ideias banais, algo incoerentes
poesia sem chama e sem ardor.
Soube então o que falhara em entender:
a água passada é como um rio imenso
que se impõe ao presente, temível, denso
Um desgosto corre sempre assim, penso
e recordá-lo de menos é esquecer:
ter amado não é ter vivido, é ainda viver
Minha mágoa envelhece devagar
A morte vem mais longe do que parece
e as feridas nunca param de sangrar
nessa profunda noite que arrefece
Um vento triste tenta esvaziar
a dor tranquila que me endoidece
pensando na incerteza de encontrar
um grito que do medo transparece
Quando a solidão áspera fica espuma
se a pequenez do total se apercebe
esvaio-me exangue, em luz pura, em suma
Sei que sobra o que nunca se concebe
sou a sombra fugaz de coisa nenhuma
que do amargor apenas desgosto recebe
Não é trivial a vida de um banqueiro
Mas foi para isto que subi neste edifício
Apenas dez por cento de sacrifício
Assim funciona o mundo financeiro
Sete mil despedidos em setenta mil
Se ao menos tivesse um sector gangrenado
A urgência seria mais verosímil
E só para isso daria meio ordenado
Inútil, esta é uma ideia mesquinha.
Sabendo embora que não consta uma linha,
procuro no texto algo sobre os efeitos
Um facto conhecido, não somos perfeitos.
Preferia uma solução cirúrgica, talvez,
Sei que um dia será a minha vez
Mas este corte terá de ser cego,
As minhas convicções nunca renego.
Sete mil quase parece desperdício
no entanto será apenas o início
Na redução do excesso de custos.
É simples: os bancos têm de ser robustos
A sua lógica é sempre ao contrário
E assinar este memorando é necessário.
Entre os trabalhadores que estão parados
Escolherão sempre os mais desgraçados.
Que cruel é esta crise maldita!
A sorte de cada um já está escrita
Perde quem deu mais, quem for frágil
Fica apenas quem se mostrou mais ágil
Mas desta maneira fica a economia
bem mais resistente e saudável.
Um passo decisivo em cada dia
Torna o nosso banco mais viável
Pensar tanto vai-me na alma pesando
Mas alguém tem de saber dominar o povo
Por isso, sento-me na cadeira de novo
E, sem hesitar, assino o memorando.
Nestas margens da brisa ergo-me solitário.
Escorre chumbo líquido pela terra dourada,
a quente emoção do medo emerge do nada
e a miragem brilha no horizonte refractário.
Vagueiam turbilhões de calor e de poeira
vozes de areia onde perto algo rasteja
e o visível é incerto, talvez nem ali esteja,
sopra vento imperfeito em abismos sem beira.
Desolação da alma, respira-se demasiado
Meu coração rebenta, os sentidos em revolta
e sufoco no mundo morto largado à solta
que, solitário, prefiro viver condenado.
Se eu voltasse atrás, o que faria?
Podia fazer tudo o que não fiz
poderia querer tudo o que não quis
sabendo, embora, que nada mudaria.
O destino decidiu o que seria
Falaste como fala uma boa actriz,
guião desenhado no quadro a giz
e disseste-me adeus, e chovia.
Percebo bem que não foste sincera.
O que ia acontecer era o que era
e um adeus não tem de ser desistente.
Mas se penso em ti e quero mudar
a vida não recua, está sempre a andar
e desistir de nós estava à nossa frente
Ali ficaste, parada, perante mim
como se fosses um simples enigma egípcio.
A boa história precisa de infeliz fim
algo de irreal que não pareça fictício.
O nosso labirinto andara ali bem perto
e seguíamos perdidos no exterior dele
o mais longe é como se fosse o mais certo
a distância entre nós é arrepio da pele.
Deixa-me, pois, levemente tocar-te
será esse o final da nossa história
Assim distante poderei enfim amar-te
pois o amor confunde e acerta a memória.
No começo, foi mágico feitiço
Eu fiquei deslumbrado e comovido
com teu sereno sorriso distante
Já caía o entardecer mortiço,
e no meio do tumulto incontido
o acaso convergiu num só instante
Vi primeiro o teu vulto no passadiço
entre a multidão e o intenso colorido.
Foi a visão breve da perfeição inconstante
Mas tive medo, pensei em compromisso
sorte assim deve ser de alguém iludido
tanta alegria à solta assusta o hesitante
Rodeado de imenso, fui omisso
o céu em brasa parecia ter ardido
e havia silêncio no ruído dominante
O esplendor ficara hirto e movediço
e escondi-me num amargor sofrido
na desistência do dia sufocante
Agora sei que o amor não é nada disso
que no crepúsculo há o caminho ferido
de quem ama de menos para teu amante
Dizem, uma eternidade inteira passou,
todo o tempo do mundo demorou
mas a morte da estrela gigante
lembra a minha tristeza errante
somente uma luz fraca que ousou
separar-se da escuridão que restou.
Afirmam que era o sol mais distante
no seu cosmos o menos cintilante.
Penso como está longe o que é finito
o tempo é a mão que fecha a porta
que faz esquecer o que não foi dito
Treze mil milhões de anos e um dia
um pouco mais de eterno pouco importa
para quem já se cansou que não vivia
O ponteiro das horas avança e destina
Sinto por dentro o sopro do deserto
a tua pele que a palidez ilumina
O teu olhar de esfinge, muito perto
Viver assim, ao contrário, desatina
tremo de acordar, de ficar desperto
minha alma tomba de uma colina,
o momento que nos resta é incerto
O tempo ouve-se cada vez mais forte
vejo-te, tesouro parado, desnorte
algo que ao acabar não mais acaba
Devo dizer-te adeus num só momento,
do deserto vem um sopro de vento:
adeus, amor, o nosso mundo desaba
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