Quinta-feira, 5 de Fevereiro de 2009

O clube

 

O Clube de Jornalistas Fantasmas ficava num imponente edifício clássico a meio da rua Maximilien de Crancé, que começa (enfim, para quem venha na outra direcção, que acaba) no faustoso e longo boulevard Victor Hugo, não longe do museu Balzac. De manhã, a fachada do velho prédio era banhada pela luz de um Sol que a bruma invernal tornava ameaçadoramente plúmbeo. E quem atravessasse o passeio em frente, protegendo-se no casaco espesso, não adivinhava a vastidão dos salões escondidos além dos tapumes e das placas municipais que prometiam obras sempre adiadas.
À hora a que cheguei nessa noite, a cidade já dormia. Atravessei a rua vazia, desabitada, e entrei no clube, atraído por uma luminosidade imprecisa que, lá dentro, bem no interior, se derramava pelas escadarias ainda solenes, parecendo ressuscitar estatuetas embutidas e baixos-relevos que uma poeira fina cobria, como se aquelas figuras etéreas e paradas tivessem ganho roupagem nova, que apesar de tudo lhes dava sombria dignidade.
Henri de Beauvilliers estava de pé e foi o primeiro que me viu entrar. Os outros, melancolicamente sentados, olhavam a mesa onde ainda fumegavam pratos. Uma única lâmpada iluminava a cena, deixando o fundo escurecido (a enorme sala de que não se viam as paredes); e soava uma música ténue, que parecia dançar, sorrindo.
“Chegas mesmo a tempo, velho camarada”, disse Henri.
Charles de Lantenac cumprimentou-me, distraído, e retomou a conversa que interrompera: “Essa saudação já nem se usa. No nosso tempo é que se fazia jornalismo, com solidariedade a sério, compaixão e nervo. Acusava-se com a pena e não havia estas amarras tecnológicas que dizem mudar o mundo, mas que são a nova escravatura”.
“Agora, só há jovens proletarizados, sem memória dos velhos tempos, dos bons velhos tempos”, acrescentou Octave Maupin. “As redacções parecem um romance de Zola e os jornalistas já nem vão para os copos juntos”.
“E a liberdade de expressão? Que é feito da liberdade de expressão?” perguntou, irritado, Claude Fléchard, que envelhecera muito, mesmo para fantasma. “E nós éramos 800, uma elite, e agora há 80 mil jornalistas. E no nosso tempo havia 800 jornais e agora só há oito. A concentração capitalista…”
Eu sentara-me e tirava comida da travessa. O vinho era um excelente Pauillac.
“Temos que ir com os tempos”, disse Henri, “a opinião pública deseja coisas diferentes, já não gosta das nossas crónicas, agora quer notícias”.
“Um insulto!” indignou-se Fléchard.
“Felizmente, há clubes como este, para discutir como se devia fazer jornalismo”, opinou Maupin.
Henri perguntou-me: “Sabemos que agora escreves num blogue. Isso não é um submundo?”
A carbonnade estava uma delícia. Também provei um pouco do ragout e da raclette. Estava concentrado nos sabores, mas lá respondi: “Há algum lugar que, para nós, não seja submundo? Eu apenas escrevo umas croniquetas, para contar as minhas memórias autênticas. Deviam fazer o mesmo, abrir os vossos blogues. Na net ninguém percebe quem são os fantasmas.”
Mas a ideia não os entusiasmou. Ficaram o resto da noite a falar das desgraças, da degradação, dos assessores governamentais, de como tudo entrou em decadência, de como não há mais nada a fazer. Claro que já se esqueceram dos erros que também eles praticaram. Nem tudo no passado era assim tão bom: corriam rios de tinta em discussões ideológicas, na minúcia onde se baralhavam amizades e se faziam ódios que só a morte tornou irrelevantes. Mas a névoa do tempo pode criar o embalo de memórias felizes.
Fantasma
 
As memórias de um fantasma começaram a ser publicadas no Corta-Fitas, mas este amigo tem agora de emigrar para aqui. Gosto desta crónica já publicada e que era a sexta da série. Nesta nova vida (ou talvez não seja exactamente vida) será a primeira. 
 
 
 
publicado por Luís Naves às 20:08

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