Sábado, 17 de Abril de 2010

O seguro

Vasile conheceu o duplo dez minutos antes do atropelamento. Era um rapaz alto, vestido com uma roupa igualzinha à sua, jeans no fio, camisa azul, grandes manchas escuras de suor debaixo dos sovacos. Tinha a barba mal-feita e começou a imitar o seu sotaque moldavo.
“Os gajos falam assim”, dizia, para o turco, “abrem as palavras como se fossem latas de conserva”.
E ria-se.
Vasile tinha passeado meia hora na companhia do turco (não era turco a sério, aquele era o seu nome de guerra). Andaram tranquilamente pelo jardim e, depois, para se ver que Vasile passara ali na zona do centro comercial à hora certa, ainda meteram conversa. No café, perguntou pelas horas; e o proprietário, desconfiado como convinha, apontou para o grande relógio na parede:
“Não sabe ver?”
“Nem tinha reparado, senhor”, esclareceu o moldavo, como se estivesse muito surpreendido: “Quem diria? Já cinco e meia”.
Ainda pensou que o amigo lhe iria pagar um bagaço, mas beberam bicas. Depois, ele e o turco saíram para a rua e encontraram-se com o duplo nas arcadas de um prédio, num sítio escondido.
“Percebeste como é que ele é?”, questionou o turco.
E o outro disse que sim.
“É mais baixinho do que eu pensava”, afirmou o duplo.
“Faz-te mais pequeno. Agora, não vais roer a corda”, cortou o turco.
“Não te preocupes, pá. É fácil, não stresses”.
Vasile e o turco foram para o carro e já nem viram o que aconteceu depois, a parte do atropelamento propriamente dito. Acontecia sempre mais ou menos a mesma coisa: o duplo punha-se à frente de um carro que viesse devagarinho, de preferência na passadeira, e durante a travagem desequilibrava-se, caía sobre a parte de cima do automóvel e rolava espectacularmente pelo chão. Tinha imenso treino daquilo, fora jogador de futebol. Depois, levantava-se, combalido, a esfregar o joelho direito. Ou se a coisa tinha corrido bem, ficava no chão, a rolar como se tivesse levado um tiro no estômago, e a gritar de dores imaginárias.
“O meu joelho, o meu joelho, estou desgraçado”, berrava o duplo, se do carro saísse uma mulher impressionável. Se ainda por cima fosse gira, deixava-se amparar.
Seguia-se a charada dos números do seguro. “Já me estou a sentir melhor”, dizia o atropelado, depois de ter sacado a informação. “Até bastante melhor. Já passou, acho eu”, acrescentava, enigmático, sem se esquecer do sotaque moldavo e de acrescentar o nome de vítima: Vasile Stepanici. Depois, era sair dali a coxear, antes das ambulâncias chegarem. Andava três quarteirões, enfiava no carro do turco, estacionado longe da vista. Era assim, aquilo que o advogado viria a chamar modus operandi.
“Foste convincente?”, perguntou o turco.
“Fiz igualzinho a um jogo de regionais em que empatámos porque consegui expulsar o goleador deles. Atirei-me para o chão de tal maneira que o árbitro ficou mais aflito do que eu”.
“E agora?”
“A condutora era uma mocinha ingénua. Até chorou. Tens aqui o número do seguro dela”.
O turco encolheu os ombros e ala, que se fazia tarde.

 

O duplo era adepto de reminiscências futebolísticas. Todas as histórias convergiam num jogo em que lixara o joelho. Não aquele jogo, em que fingira, mas outro, a sério. Tivera direito a ovação, à saída da maca em que o tiraram, como se faz aos feridos da guerra, mas com as palmas. Fim de carreira e ainda nem completara 20 anos. “As malditas infiltrações, o filho-da-mãe do massagista”, resumia. “Nada funcionou. A lesão era tramada como o diabo, os gémeos espatifados, o menisco arrebentado. Uma vez, o sacana do treinador pôs-me a jogar a dez minutos do fim, que tínhamos de ganhar, precisava do meu sacrifício, e às tantas senti aquele puxão que até parecia que me estavam a arrancar o joelho com um alicate. Doeu que se fartou. Sabes o que é uma dor no joelho, Vasile? É uma dor fodida”.
Uma pausa, o siêncio, depois o final injusto da história: “Nunca mais andei como deve ser. Um dos rapazes da equipa, que não tinha nem metade do meu jeito, acabou no Benfica. Mesmo como suplente, ganhou um dinheirão. Era um sarrafeiro do pior, aquele, um cepo dos que se põem a jogar à frente dos nove defesas só para mandar um gajo dos outros para o estaleiro. Não jogava um caracol, mas ganhou para cima de uma pipa de massa”.

 

Vasile não era um rapaz brilhante. Por esta altura do campeonato ainda não tinha percebido porque razão o turco se interessara por ele. Às sete da tarde, quando chegaram à garagem os outros membros da quadrilha, Vasile ainda pensava que o iam contratar para serviços de reparação automóvel. Não percebia nada de motores, carburadores e válvulas, mas um tipo sempre se desenrasca, pensou. Aprenderia depressa, pensou. Era melhor do que passar fome, pensou.

O turco tinha um martelo na mão e disse assim:
“Amigo Vasile. Chegou a hora”.
“A hora de quê?”, perguntou o moldavo, antes de sentir uma dor devastadora no joelho direito. Rebolou no chão, a agarrar-se ao joelho, a contorcer-se como um louco, a gritar como fazem os porcos no matadouro. Guinchou a plenos pulmões, num uivo comovente que chegou a alarmar o turco e os restantes membros da quadrilha. Uma berrata que só eles ouviam.
“Parecia o Maradona a lesionar-se”, comentou o duplo.
“Se calhar, martelei-o com força a mais”, ainda temeu o turco.
Depois, a tempestade amainou. Vasile já só chorava de dor insuportável. Estava em posição fetal. Disse qualquer coisa incompreensível em moldavo. E então perguntou, numa voz sumida:
“Porque é que fizeste isto, turco?”
“Se queres a tua parte, tens de ir ao seguro reclamar”, respondeu o turco, implacável.

 

Um mês depois, quando sacaram a massa, o duplo ainda lhe deu boleia até à estação. Explicava ao amigo moldavo que se fosse à polícia fazer queixa ainda ia preso, por cumplicidade com o esquema da quadrilha, que no fundo não prejudicava ninguém, porque o seguro pagara a julgar que ele, Vasile, tinha sido o atropelado.
“E levas 10%, não é nada mau. Mil euros por um joelho partido é mais do que eu ganhei. E o seguro pagou os tratamentos. E tiveste sorte do turco não te dar uma martelada na cabeça quando ameaçaste ir à polícia. Ele às vezes tem uns vibes assim para o bruto”.
Vasile foi coxeando até ao cais de embarque. O duplo levava-lhe a mala leve. Ouviu-se o uivo do comboio, ao fundo.
“Então, boa sorte para ti, amigo Vasile”.
O comboio parou. O moldavo subiu para a carruagem, em dificuldades, e o atropelado passou-lhe a mala.
“Tu és bom homem, não és como o turco”, disse Vasile. “Espero que voltes a jogar futebol”.
“Não é possível. Estou todo espatifado”.
“Então, que tenhas sorte. E não te magoes nos atropelamentos”.
“E tu, tem atenção a gastar a tua massa”.
“Vou ter cuidado”.
“O seguro morreu de velho”.
Disseram adeus um ao outro e o comboio lá seguiu, aos solavancos a princípio, como se coxeasse levemente sobre os carris, depois num deslizar perfeito, a escorregar na linha.


 

publicado por Luís Naves às 17:11

link do post | comentar | ver comentários (4) | favorito
Segunda-feira, 1 de Março de 2010

Uma coisa estúpida


 

Acordara com a boca cheia de papéis molhados. Lâminas de luz atravessavam as frestas dos estores e projectavam-se na parede; saiu da cama; o corpo da mulher enrolou-se nos lençóis, num resmungo; foi descalço até ao banho, olhou-se ao espelho, viu a sua figura desgrenhada: o ventre alargara, tinha a cara pateta.
A manhã foi gasta em atrasos. Os miúdos sabiam que nesse dia não iam à escola. Joaquim Nogueira teve vontade de distribuir tabefes, mas Maria Ângela apoiava as crianças. Quando saíram para as compras eram quase dez horas e viu que o carro tinha pouca gasolina, por isso pararam no posto de abastecimento, mas havia uma fila imensa porque o preço ia subir na semana seguinte e todos os forretas atestavam. Começou a buzinar para um idiota que não saía da frente e este respondeu com um gesto obsceno. Hesitou se saía do carro para esmurrar o filho-da-mãe, mas o tipo de dedo no ar foi salvo pelo que disse Maria Ângela:
“Se não o tens maior do que isso…”
Fora tão ridículo que desataram os dois a rir. E o gajo, ao vê-los a rir, meteu a viola no saco. Depois, arrancou da fila com chiadeira de pneus. Tinha um daqueles carros tuning, todo artilhado. Joaquim abanou a cabeça, a lamentar, enquanto o puto, inclinado para a frente, perguntava aos pais de que se riam:
“Coisas de adultos, chega-te para trás”, gritou Joaquim.
Saíram da bomba de gasolina e seguiram em procissão até ao hiper. Havia bicha, o costume. Depois, andaram às voltas.
“Eu queria vir mais cedo para poder estacionar”, protestou, para Maria Ângela, a culpá-la pelo atraso. Mas ela encolheu os ombros.
Encontraram o vizinho David à porta do supermercado, numa barafunda de gente que entrava e saía. Era um daqueles encontros por acaso, meio incómodos.
Joaquim reparou que o vizinho parecia distraído, a olhar para Ângela, mas foi um gesto tão rápido que mal se podia notar, um embaraço quase inocente. Ela inclinara a cabeça, numa submissão, talvez numa promessa. Depois, recompôs-se, disfarçou. Houve um relâmpago de beleza na face dela, sorrira com alguma malvadez. Maria Ângela andava com mais cuidado na aparência (crises de trintona, pensava). Sentiu uma comichão de incerteza. Era coisa para estragar o sábado a qualquer um.
Só depois apareceu a mulher de David, uma gorda macambúzia. Reparou como era feia: cabelo espigado, de quem não ia ao cabeleireiro; a pele por tratar, unhas roídas. E os dentes, um desleixo. Não admirava que o tipo deitasse olhares à mulher alheia.
Trocaram cumprimentos de circunstância. Afectuoso, David metia-lhe a mão na ilharga: um compincha, como um carteirista procura a carteira. Estás bom, estou óptimo, eu também, andas mais barrigudo, tens de ver isso. O malandro cravava a farpa. Joaquim Nogueira esteve quase para comentar a perda de cabelo do vizinho, mas o outro teria a resposta clássica, que era sinal de bom amante, e não quis dar abébias.
Depois, o vizinho David seguiu para as lojas do exterior do estacionamento, com a feiosa da mulher dele.
O hiper parecia um comício. Pessoas aos berros, uns mais apressados, ninguém com paciência, todos a olharem para o ar, na direcção das prateleiras altas, como bandos de patos a andarem no chão, de bico espetado, olhando o ar como num sonho. E, na confusão, a música suave em fundo; Sinatra, pareceu-lhe Sinatra, como era a canção? Something stupid, um tipo que quer encontrar alguma coisa de inteligente para dizer e não consegue, diz sempre uma coisa estúpida. E o raio da melodia ficava de tal maneira no ouvido que fez deslizar o carrinho às voltas, como se estivesse a dançar. Maria Ângela queria ir para outro lado e chamou-o e discutiram e ele deu-lhe o carrinho e os miúdos e disse que se encontravam naquele exacto lugar daí a 40 minutos. E foi assim que, sozinho, avançou para a zona das televisões, enquanto assobiava something stupid, a fazer-se ouvir sobre uma música nova, que não queria saber qual era; aquela entrara-lhe pelo ouvido dentro e parecia que lhe rebentava a cabeça.
Ficou a ver os produtos num espaço de roupa de desporto. Os emblemas eram engraçados. Percebeu que havia promoções e pechinchas, e viu aquele fato de treino azul, de duas peças. E ocorreu-lhe então o comentário do vizinho David (estás barrigudo) e estava: tinham posto um espelho naquela secção e observou-se, primeiro de frente, depois de perfil; o ventre inchara e parecia mais atarracado e as costas dobradas davam-lhe mais anos. Que diabo, não tardava a obesidade irreversível. Era urgente que fizesse corrida e devia começar quanto antes. Tinha umas velhas sapatilhas em casa, faltava-lhe o fato de treino. Correria nas traseiras da última fileira de prédios do bairro, na estrada antiga, restos de uma urbanização que nunca fora construída, junto a um eucaliptal onde havia umas barracas. Uma pista perfeita.
 Pegou no fato de treino e foi à procura da família.
Viu Maria Ângela e os dois miúdos na quinta fila e, quando se aproximou, a mulher estava a passar um ralhete à menina, que não parava quieta. Havia nervos no ar.
Maria Ângela interessou-se pelo que ele trazia na mão, mas a pergunta foi irónica. Joaquim explicou que era um fato de treino, barato e tudo.
“Setenta euros, barato? Estás maluco?”
Ficou calada, como quem dizia que não queria discutir. Mas estava zangada e deitou-lhe um olhar de censura quando ele lançou o fato de treino para o carrinho de compras.
“Vamos para casa, estou farto disto”, disse ele.
“Falta a fruta. Os meninos precisam de comer fruta”, respondeu a mulher, numa fúria.
Quando saíram era quase meio-dia. Ainda gastaram tempo na fila para sair e no acesso à estrada, numa rotunda que entupia aos sábados. A irritação só passou quando Maria Ângela lhe berrou para guiar com menos acelerações, porque os meninos não se seguravam no banco de trás. Avançava dez metros depressa e travava; depois, repetia, como se quisesse abalroar o carro da frente e só desistisse no último segundo. Então, distraiu-se, e houve um guincho fundo que o assustou, o som de vidro estilhaçado e, no silêncio, irrompeu a sentença do puto, atrás: “Já fez merda”, disse o sacaninha precoce.
Enquanto se iniciava a berrata no interior do carro, com a miúda a chorar e Maria Ângela aos guinchos para que ela se calasse, o que só aumentou a crise, Joaquim saiu para ver os estragos. O carro da frente, um corsa verde, perdera um farolim da traseira. Da viatura saiu uma rapariga que não tinha vontade de lhe perdoar a entrada atrás. Vinha vermelha como uma virgem. E no ar começou uma furiosa buzinaria, enquanto um velhote a pé se aproximava, solícito:
“Vi tudo, menina, ele teve a culpa”, disse o velhote transeunte.
 “É o que dá ter pressa”, afirmou a rapariga.
“Põem-se a travar quando não há nada à frente”, defendeu-se Joaquim.
Aquela tentativa de contornar o problema teve a propriedade de a irritar ainda mais. Ela pôs as mãos na cintura fina, a boca torcida descontrolava-se e perdera a beleza, avançou com o peito:
“Ouça lá, você não vinha a fazer habilidades, ali atrás?”
“Só digo que as pessoas travam por tudo e por nada. Deviam proibir as mulheres ao volante, porque se assustam com a própria sombra”.
O tom de voz dela subiu para sol sustenido:
“E ainda acha que tem razão? Bate-me na traseira e ainda acha que tem razão? ”
O velho saltara em defesa da dama, cuja traseira (observou Joaquim quando ela se virou para tirar a mala do interior do carro) aliás era bastante larga e, portanto, difícil de evitar, mas não o disse assim, estava disposto a apaziguar a situação.
“Eu vi tudo. Este senhor vinha a fazer ralis e não travou a tempo”, explicou o velho, a meter-se onde não era chamado.
A buzinadela colectiva dos carros que se acumulavam depois da rotunda tornou mais urgente a resolução do problema. O irritante era a cacofonia das diferentes buzinas, umas mais agudas e prolongadas, outras curtas e graves. Faziam doer os ouvidos. De súbito, Joaquim sentiu-se desconfortável, com a fúria da rapariga, os estilhaços do farolim, as mãos na ilharga (genes de varina) e o ar beato do velho, e um carro que irrompia, a acelerar na faixa contrária o condutor a gritar insultos. As coisas começavam a andar à roda; estava tudo distorcido. Só havia uma saída: render-se.
“A culpa é minha, tudo bem”, admitiu, nem assim apaziguando a rapariga, que desatara numa lição de moral, ainda a dizer que ele era um chauvinista, enquanto o velho lhe chamava fangio de meia tigela. Porque é que estavam a fazer tanto barulho? Sugeriu que tirassem os carros do caminho, apontou para um local onde poderiam preencher a papelada do seguro e teve de rosnar para o velhote para que se afastasse, porque este tentara atiçar as brasas, a inventar que não podiam tirar as viaturas do local antes de a polícia chegar. Atrás, apitava-se com energia e a rapariga cedeu. O prestável cidadão sénior resmungou qualquer coisa sobre a ingratidão e retomou a marcha.
“É melhor dares de frosques”, disse Joaquim, de vingança para o velho, mas em voz muito baixa, de maneira a que ninguém o ouvisse.
Gastou meia hora a preencher os papéis do seguro. Depois, fugiram para casa e Maria Ângela preparou o almoço. Os miúdos não paravam quietos, mas a sua mulher ficara calada, demasiado calada. O silêncio antes da tempestade.
Apenas trocaram palavras de circunstância. Ela ralhou-lhe quando começou a deitar sal na comida e ele ainda deitou mais, em desafio, mas a comida ficou demasiado salgada. Comeu com dificuldade, mas sem mostrar repulsa, para não dar parte de fraco. Uma porcaria, mas comeu em excesso e ficou pesadíssimo, com tanta água que teve de beber.
A refeição tornou-o sonolento, mas o miúdo queria ir jogar à bola e prometera-lhe brincar à tarde.
A tarde estava calma, mas o bairro parecia anormalmente habitado. Quando pensava nisso, sentia quase um arrepio: nos dias de semana, aquela era uma cidade fantasma; só recuperava ao fim de cada dia, quando toda a gente regressava do trabalho, desembarcando em pequenos exércitos de cada vez, na estação de comboios. E, no crepúsculo, as luzes dos prédios começavam a acender-se, um quadrado de cada vez; até que, quando já estava noite escura, cada edifício se iluminava como uma grelha de bingo, fila completa, cartão completo.
No quarteirão havia uma tira de verdura: árvores raquíticas, que a câmara plantara na Primavera anterior, e com três bancos corridos, um dos quais à sombra, onde se sentara um homem, a ler um livro de bolso. E entre os bancos, um espaço plano que servia para jogar. Foi o local que escolheram, sem carros nem vidros à volta, e se dessem um chuto mais forte a bola não iria para longe.
Começaram por dar toques suaves na bola, mas faziam barulho. Reparou, pelo canto do olho, que o homem sentado os observava ansiosamente: o livro aberto começou a descer um pouco, para um ângulo afastado que tornava difícil a leitura, e o olhar dele fixava-se por vezes nos dois jogadores, óculos precariamente pendurados no nariz; mas não se entendia se o gesto era de irritação, curiosidade ou de quê. Por vezes, o homem movia o corpo, com impaciência. Entretanto, o miúdo excitara-se e fazia cada vez mais barulho, disparando a bola na direcção de Joaquim com força e ainda mais força, a imitar os craques do futebol. Sentiu uma vaga de terno bem-estar, por brincar com o filho, mas o interesse lateral pelo homem sentado perturbava o que lhe sobrava da sensação agradável. E resumia mentalmente: o maduro veio para a sombra do jardim ler e começa a estar irritado com o barulho que o impede de se concentrar na leitura. Com um pontapé seco, o miúdo chutou a bola com força inesperada e ela voou até ao banco de jardim, atingindo o homem em cheio. Livro e óculos voaram para o chão e o homem ficou paralisado, o olhar indignado a fuzilar Joaquim Nogueira.
 “Porque é que não vai brincar com o seu filho para mais longe, para um sítio onde não incomode as pessoas?”, disse o homem, com uma aparente calma.
Joaquim ficara sem resposta. Esperara mais agressividade, mas decidiu combater. Que direito tinha aquele pedante de se sentir superior?
“O miúdo não volta a chutar com tanta força”, prometeu.
O outro enervava-se:
“O senhor está a incomodar, não percebe isso?”
“Só demos alguns chutos na bola. Não estamos a incomodar ninguém”.
“Não é verdade. Está a incomodar-me. Estou a tentar ler”.
“E quem o impede? Não voltamos a chutar na sua direcção”.
O homem parecia estupefacto e ficou em silêncio, muito corado. Para Joaquim, a equação era simples: se o outro queria discutir por causa de uns chutos na bola e por causa de um livro, então força, que o fizesse. Estava disposto a defender o seu direito de brincar com o filho num espaço público. Aquele local não era de quem chegava primeiro e se instalava a ler. E que lhe importava isso? Ler não ocupa espaço, nem é incompatível com o divertimento de cada um.
Tinha o pé sobre a bola, parada no chão, mas num golpe leve fez com que saltasse no ar e deu-lhe três toques, até a perder de novo. O homem levantou-se, hesitou, depois abandonou o local, sem mais uma palavra.
O desconhecido tivera uma reacção estranha. De repente, deixara de fazer sentido continuar a dar toques na bola. Teve dificuldade em convencer o miúdo de que não lhe apetecia continuar o jogo. O puto quase chorou, mas teve de aceitar. Joaquim pegou na bola e subiram para casa. Eram três e meia, hora de transição, parecia-lhe, enquanto os habitantes dormiam a sesta ou terminavam os passeios depois de almoço, outros saíam para visitar as famílias, deixando lugares de estacionamento. E até o ruído lhe parecia diferente, pausa de tranquilidade a soar fantasmagórica.
Quando chegaram perto da casa, o filho já se esquecera da bola e anunciara que queria ver televisão. Joaquim subiu as escadas como se subisse ao calvário. O peso da angústia, que não sabia de onde vinha, quase o asfixiava.
Em casa, reinava o silêncio. A miúda ficara no quarto, a fazer os deveres da escola, e o rapaz desapareceu na sala, para ver televisão. Maria Ângela deitara-se. Fechara os estores, para manter o quarto escuro. Ele entrou sem fazer barulho e percebeu que ela não adormecera. Perguntou o que se passava e recebeu em troca um murmúrio. Enxaqueca.
Sentou-se na borda da cama. Ela estava vestida, descalça, as mãos sobre a cabeça, a esconderem os olhos.
Uma qualquer ferida por mencionar alastrava como se fosse uma mancha inerte e cuja dor era igual a uma comichão, ligeiramente incómoda a princípio, mas sempre presente e nunca insuportável, tornando-se a pouco e pouco rotina, facto quase irrisório e esquecido.
Uns vagos ciúmes ou o desinteresse. Ela engordara nas ancas, parecia mais pesada. Tentou recordar-se do corpo dela e percebeu, com surpresa, que se lembrava apenas de fragmentos, de episódios soltos do passado.
Que restava de tudo isso? Uma certa forma de ruínas, pensou.
Foi então que se lembrou do fato de treino. Onde estava? Foi procurá-lo, desembrulhou-o, cheirava a goma e plástico. Vestiu-o, pôs as sapatilhas velhas e saiu de casa.
Levantava-se uma brisa que fazia ondular os eucaliptos. Atrás dos prédios soturnos, havia uma velha estrada esburacada. A pista de corrida ideal. Joaquim Nogueira olhou à volta e não viu ninguém. Sentiu uma calma estranha, mas uma outra sensação que o inundava, primeiro devagarinho, depois numa irrupção violenta. Raiva, sim, era raiva o que sentia: pelas humilhações que cobriam toda a sua vida, como um orvalho.
A primeira corrida foi a passo ridículo; dava pequenos saltos, à semelhança daqueles coelhos que não querem fugir dos caçadores por não se aperceberem do perigo; depois, ligou o turbo e correu vinte metros numa explosão de vigor; e recomeçou o passo lento, um passeio na avenida. Chegou ao outro lado da estrada. Andara cem metros e havia uma barreira que tapava metade do caminho; para além do obstáculo, via-se o topo de algumas barracas. Não teve curiosidade e largou numa corrida forte em sentido contrário, a deitar tudo cá para fora, acelerando até ficar sem fôlego; depois, outro lanço a velocidade, para suar bem e descarregar a irritação que o consumia nos próprios ossos. Correu, correu loucamente, até sentir os músculos das pernas a sufocarem. E parou junto à barreira, para encher os pulmões. Sentia uma sede devastadora e o corpo inchara de força.
E foi nessa altura que viu os dois pretos, que olhavam para ele. Estavam parados, com ar mau, observando o que ele fazia. Assustou-se de repente. Deviam ser das barracas. Talvez fossem ladrões. Sentiu que não havia fuga, que não teria velocidade para fugir deles, pois as pernas estavam esgotadas e a raiva dissipada tornava-o um cordeiro disposto ao sacrifício. E na mão de um dos pretos brilhava o que lhe pareceu ser uma faca. Sentiu um arrepio de puro pânico.
Nem pensou muito. O cansaço, o medo e a dor vieram todos ao mesmo tempo, as pernas fraquejaram e caiu no chão, sem conseguir respirar e sem poder mover-se. O braço foi trespassado por uma dor destruidora, de mil agulhas cravadas. Tinha os olhos abertos na direcção do céu e ainda viu a cara dos dois pretos que o olhavam, no contraste do azul, muito alarmados, segundo lhe pareceu.
E um dos homens dizia para o outro para chamar uma ambulância; não sabiam o que fazer.
E a faca era um telemóvel e um dos pretos chamava alguém do outro lado:
“Ficou mal, está caído, andava a correr na estrada, vestido com um fato de treino muito quente”. E um sussurro eléctrico, incompreensível, saía do aparelho.
Os pretos abriram o fato de treino. Obedeciam a instruções do além. 
“Aguenta, vizinho, aguenta um pouco que já vem ajuda. Os médicos dizem que se calhar tiveste um farto do coração e que tens de aguentar um bocadinho”, disse o homem que falara ao telemóvel. “Estão mesmo a chegar”.
Joaquim pensou em água. Rios de água fresca. Tentou dizer a palavra água, mas a boca não se movia. O braço formigava e o peito parecia ter fogo a correr-lhe dentro como se fosse água. Mas a sede era o que lhe doía mais. E, ao longe, pareceu-lhe ouvir a melodia de Sinatra. Com receio de dizer qualquer coisa de estúpido, decidiu não dizer nada.
Os dois pretos desconhecidos continuavam debruçados. Não saíram dali até se ouvir uma sirene que se aproximava, numa aflição. Joaquim Nogueira notou uma grande calma na sua raiva. E, tirando a sede, sentiu-se bem, verdadeiramente bem, até chegar a escuridão.

 

Publicado na revista das Correntes d'Escritas 2010 

publicado por Luís Naves às 23:36

link do post | comentar | favorito
Segunda-feira, 4 de Janeiro de 2010

Passeio com Átila

 

Da obscura bruma, cinzenta e fria, saiu aquele par de silhuetas. O rapaz era alto e magro, vinha agasalhado com um cachecol velho que destoava do sobretudo. Pela trela, trazia o cão rafeiro, com costela de pastor-alemão. Desceram devagar a rampa e o homem escolheu um banco de jardim, onde se sentou, apesar da forte humidade. Depois, largou o cão da trela e disse, em voz alta, como se conversasse com ele:
“Podes ir, Átila, mas não te afastes”, e admoestava o rafeiro, com o dedo espetado.
A princípio, o animal largou por ali fora, deu três pulos no relvado, cheirou algumas árvores, depois voltou para junto do rapaz, que meditava, a observar o espaço confinado no nevoeiro, as copas de arvoredo no fim do descampado do jardim, as folhas amareladas das árvores mais próximas, a luz que tentava romper a barreira das nuvens.
O cão ficara em frente ao rapaz, sentado sobre as patas traseiras, à espera, a observar o que faria o humano:
“Queres saber como é papar a velhota...”, disse o homem, para puxar conversa.
O cão moveu a cabeça para o lado; talvez para escutar melhor, talvez para tentar compreender a ordem dos sons que o humano fizera.
 “Pois, meu amigo, isso tem os seus problemas”.
O focinho do cão avançara ligeiramente, como que numa interrogação.
“Papar a velhota, digo...”, esclareceu o rapaz.
O cão abriu a boca, descontraíra, tinha a língua de fora...
“Tu deves achar esquisito. Apareci em tua casa, assim, sem aviso, tu percebeste logo ao que eu vinha... Mas não podes compreender porque fiquei com a tua dona...”
O cão ficara ainda mais atento, o olhar interrogador, insatisfeito...
“Ela controla tudo, sabes”, continuou o jovem. “Divorciada, sem filhos, muito dinheiro. E já chegou à idade em que as mulheres se estão nas tintas para as aparências, podem namorar com um tipo como eu, que sou solteiro desempregado, ainda por cima ambicioso. Olha para este magnífico sobretudo”, e mostrou a qualidade do tecido ao canino, que cheirou o casaco. “Boa matéria, foi ela que me comprou, belo presente...”
O homem recostou-se melhor no banco do jardim:
“Achas mal que receba presentes? Tu também dependes dela...”
O cão de novo tinha a língua de fora, como se concordasse...
“Gostei de a conhecer” disse o rapaz, recostando-se melhor no banco de jardim, perna traçada, gestos no ar. “Um dia, claro, vou-me embora... Ela vai chorar umas semanas e depois procura outro matulão como eu. Ou talvez nem chore. Aponta o dedo e diz que a porta é serventia da casa. Temos vinte anos de diferença e ambos sabemos que isto não é para casar. O ideal seria ela arranjar-me um emprego. Até esse dia, dá-me presentes”. Deixou o olhar no cão, mudou o semblante: “Não achas bem?"
Agora, fizera uma pergunta. O tom de voz mudara, tornara-se áspero. O cão apercebeu-se da transformação e olhou para o rapaz, à procura de pistas para compreender o motivo da transição. Depois, o canino distraiu-se, olhou para o lado e rosnou, na direcção do vazio. Houve uma pausa. Em vez do silêncio, surgia um rumor de passos. Do nevoeiro surgiram dois vultos; eram dois homens jovens, que também desciam o caminho asfaltado, no meio do parque público. Vinham a conversar. Aproximaram-se. Pararam junto ao rapaz do sobretudo. Dois skinheads.
Tinham aspecto ameaçador e rufião. Casacos de cabedal, correntes metálicas e tatuagens. Pararam em frente ao banco de jardim.
“É feroz, o rafeiro?”, perguntou o skin mais alto, apontando para o cão.
“Chama-se Átila, portanto, deve ser mau como as cobras”, respondeu o rapaz.
O segundo skin acocorara-se ao lado do animal. Começou a fazer-lhe festas no pescoço e na nuca.
“Parece manso”, disse.
Ficaram os quatro ali calados. Então, o segundo skin foi correr com Átila no relvado; disse que ia testar a velocidade do animal. O outro, o mais alto, que parecia ser o chefe, sentou-se ao lado do rapaz do sobretudo:
“Tu não trabalhavas naquela fábrica que fechou?”, perguntou o skin.
O rapaz fez um gesto, a dizer que sim.
“Eu também. Não te lembras de mim? Trabalhava na secção de polimento. Mas, na altura, usava cabelo comprido...”
“Ah, sim! Lembro-me... Pena a fábrica ter fechado... E, depois, arranjaste emprego?”
“Não! Quem é que hoje arranja emprego? Ando pra qui...Tu, é que tás a subir na vida, casaquinho à maneira...”
“Nem por isso...Tenho uma velhota por conta... É dona de uma escola privada e tem carro e narta”.
“Dá-te umas lições, a velha?”
“Nem por isso...”
“O cão é teu?”
“É dela. Eu só o vim passear.”
“É giro, o cão, e tem um nome porreiro!”
“A minha gaja disse uma vez que era o nome de um guerreiro que andou a espatifar o mundo e a quem chamavam o flagelo de Deus”.
“É sabichona, a tua gaja?”
“Pois, se tem uma escola...”
Átila e o outro skin tinham regressado. O cão arfava de contentamento, afeiçoara-se ao desconhecido e cheirava-lhe as calças e as botas.
“Parece que vai começar a falar, o sacana”, disse o skin, a apontar para o rafeiro.
Depois de dizer aquilo, o chefe levantou-se, espreguiçou-se:
“Tou cá a pensar nesse tal guerreiro”, disse ele, numa risada. “Se calhar o tipo tinha dignidade, porque já nessa altura o mundo precisava de espatifação”.
Dito isto, os skins foram-se embora, mas só se despediram do animal, com grandes festas no pescoço, no dorso e amigáveis palmadas na nuca do rafeiro.
Regressara o silêncio. O parque mergulhara numa espécie de intervalo, com a cidade imperceptível atrás da névoa densa e os pensamentos a fluírem sem nexo.
“E aqui estamos nós os dois sem termos para onde ir”, disse o rapaz, a falar sozinho.
E o cão gemeu um pouco, sempre a observar o humano; inclinou a cabeça, como se tivesse pena dele; abriu muito os olhos, como se quisesse dar-lhe força para tomar uma decisão.
“E tu aqui a perceberes tudo o que nós dizíamos...”, murmurou o rapaz.
E, depois, num sopro breve: “Vamos pra casa, Átila, meu flagelo”.
 
 
Conto antigo, talvez pedaço de uma novela, (gosto imenso dele, não sei porquê) e que publico aqui por ocasião do primeiro aniversário deste blogue
publicado por Luís Naves às 11:22

link do post | comentar | ver comentários (6) | favorito
Sexta-feira, 23 de Janeiro de 2009

Decisão

 

Ele estava sentado na fonte, de costas para o chafariz. Atrás, havia uma bacia de pedra, cheia de água; e ouvia-se o barulho do fio que corria do cano, pequena cascata a estalar como fogo-de-artifício na feira.
Do saco que trazia a tiracolo ele tirou uma bolacha. Procedeu com gestos cuidadosos, arrumados; demasiado arrumados, excesso de arrumação, pareceu-lhe; como se estivesse a acariciar o único fato; ou até pior: como se alinhasse o lençol que cobria um filho morto; enfim, gesto intranquilo, repleto de austeridade.
Viu que ele tirara a bolacha do saco e que, devagar, começara a trincar a massa estaladiça, expressão de prazer. Na lua cheia da bolacha ficou o desenho da meia lua, que era a impressão do maxilar dele. Pareceu pequeno. A fonte continuava a cantoria, melancolicamente monótona.
Os músculos dele moviam-se ao ritmo pressuroso do queixo que triturava a bolacha. Músculos debaixo dos olhos, movendo-se como bielas de motor; nas bochechas e até na testa também algo se movia, frémito de pele semelhante a uma contínua mastigação de ideias, moendo prosseguidamente a coerência interna da bolacha, que se quebrava em pedaços minúsculos, um dos quais inclusivamente ficou preso na comissura dos lábios, pegajosa superfície que, observada a partir do exterior, lhe provocou um súbito arrepio de nojo. Rosácea palpitação, flor carnívora, beiços pálidos.
O movimento dos músculos era como se debaixo da pele dele houvesse delicados vermes.
A bolacha ficara meio devorada. Havia migalhas no chão, que as formigas descobriram por sorte ou por persistência, aventurando-se naquele solo encharcado pela água transbordada da fonte. Ela observou o carreiro de formigas que se ia formando entre folhas da relva amassada e hastes de pequenas flores esmagadas. Fixou o olhar nas meias dele, de um tecido áspero, e no pedaço de pele do tornozelo, entre as meias e a calça. Pele tão lívida como farinha, sem vontade, decisão ou energia.
A bolacha desaparecera na boca dele, volume distorcido lá dentro, como se um animal preso quisesse escapar em desespero. E os músculos satisfeitos da cara tinham agora tom avermelhado, de sangue feliz.
As nuvens deslizavam no céu, sopros vindos do horizonte. E, ao fundo, alguém pintara o vermelho infernal do crepúsculo.
Ela percebeu que o verão terminara. E nesse instante, onde se misturavam as migalhas da bolacha, decidiu que nunca se casaria com ele. 
 
publicado por Luís Naves às 18:57

link do post | comentar | favorito
Domingo, 4 de Janeiro de 2009

Emboscada

 

A estrada de terra era como um ribeiro seco, serpenteava indefinida.
E o homem perdera-se na selva dos seus pensamentos: sentia os músculos tensos, o corpo quente, as ideias febris. O ritmo marcial das suas botas ecoava entre colinas, nos campos vazios, nas copas indolentes dos pinheiros selvagens; ouvia-se pelo chão doente, na marcha descompassada de um coração sombrio.
Começava a pesar-lhe o saco que trazia às costas; e as roupas civis incomodavam, demasiado apertadas, excepto as calças, que não ainda trocara, por não conseguir arranjar umas que lhe servissem. Estava a andar há quase uma hora. A aldeia era ainda mais à frente. Na momento do maior calor devia estar desabitada.
Olhou as árvores à volta, curvadas pelo estio pesado, a ameaça de trovoada acima; e sufocava-se naquele ar, que lhe agarrava a garganta com os seus dedos longos. Seria o cansaço ou a atmosfera densa? Os cheiros sentia-os diferentes, compreendia isso, mas havia algo que não se diluíra ainda na confusa amálgama à sua volta.
 
Foi numa zona mais fresca do caminho, numa curva da estrada, que ouviu o canto estridente dos insectos. Já o tinha ouvido antes, claro, mas era um som indistinto, só agora presente. Fez mudar a redoma em que se refugiara. Insistente, repetido, parecia vir do próprio solo, assobios sincopados que funcionavam como vibração da terra, enfim, respiração e suor. As memórias misturaram-se: a escola da infância, a voz da mãe que o chamava do campo, o som alegre dos regatos, o badalo de um animal que pastava num campo vazio; os fetos que cobriam a pele da floresta; e da mata, longe, do outro lado do pinhal, de onde fluía uma luminosidade gloriosa, chegava uma voz distante, a dizer não se sabia o quê... E o silêncio pantanoso, as paredes carcomidas do bunker, a paisagem verde em frente, o cheiro a cinza da cubata e o relâmpago solar da faísca de uma bala a bater a centímetros da cabeça...
E foi nessa altura que sentiu medo e começou a andar como quem se prepara para a emboscada.
 
O estalido fez com que se virasse, alerta. O ruído viera de um ponto mais elevado, um pouco atrás de si, sobranceiro à estrada (pinha a cair do alto? Um gato vadio? Um corpo em movimento?).
Sem desviar o olhar, tacteou o chão com a ponta da bota e começou a recuar.
O arvoredo mudara: era mais espesso, de folhas grossas, de verde bizarro. E pensou: minas! Uma onda de angústia tornava a claridade ainda mais brilhante, mas não podia desviar o olhar para o chão, pois o inimigo estava ali perto, quase o pressentia; e de súbito detectou aquele odor a floresta morta, a proximidade, calor, opressão, o besouro estridente dos apitos, a voz perdida no nada. E os ramos das árvores batiam uns nos outros, num rancor...
...De súbito, aquela sombra fugidia, bater de asas; e outra, pelo canto do olho. E de novo um estalido, talvez passos. Cercado, não tinha mais tempo, sentia fúria, correu na direcção oposta para um monte de arbustos, queria viver (não via nenhum companheiro, estava perdido) e saltou para além do visível, sem olhar; teve a noção dos espinhos que lhe rasgavam a mão e a face; e o joelho arrastou-se pelas pedras; o caminho parecia livre, nuvem de pó...
...Resvalou pelo declive, tombou de frente, desequilibrado, escondeu-se atrás de um tronco (a arma, onde perdera a puta da arma) o tempo parava, viu outra sombra: fugir dali...as minas...os turras próximos...para onde?...
 
E quando viu o rapaz estupefacto, branquinho, de tronco nu, lá em cima, onde ficara a estrada, percebeu que...
A mão sangrava, esfolada, e pela sua face corria um líquido quente; magoara-se no nariz, parecia-lhe, mas não lhe doía nada.
O homem sacudiu a poeira da roupa; as calças militares estavam um pouco rasgadas.
Atrás do primeiro miúdo, chegara outro. Tinham penas de galinha espetadas na cabeça, presas por um pano. E na mão arcos de fingir, paus a fazerem de setas.
Um deles disse:
“Uh! Uh! Estás morto. Vamos arrancar-te o escalpe!”
E os outros desataram a rir. Havia mais dois, um dos quais dançava, mão na boca, aos gritos e ao pé-coxinho, como um boneco a rodar num eixo. Estavam em tronco nu, tinham pinturas no peito, riscos vermelhos e círculos.
 
O homem tentou dar um passo, mas sentiu uma dor na perna. E a cólera era uma onda tépida, que começava a sufocá-lo.
Agarrou alguma coisa, uma planta talvez, que a sua mão esmagou com força...
Os miúdos riam num desvario. “Assustou-se com os índios”, gritou um deles, escarnecendo lá para baixo. “Teve medo dos índios”...
A perna doía-lhe, mas o homem começou a subir o declive, de volta à estrada:
“Canalha do diabo, se vos apanho!”, gritou.
E avançou como um touro, desajeitado na subida, tropeçando, o peso a empurrá-lo para baixo.
Os quatro miúdos fugiram, cada um para seu lado, um deles aos gritos, três ainda na risota, esconderam-se no outro lado da estrada e ouvia-se “Uh! Uh!”.
Depois, passos de corrida, uma poeira fina na vereda que se internava na floresta.
 
O homem conseguia respirar mais devagar. Ficou ali parado, na estrada branca. O silêncio regressara, excepto o barulho do vento que fustigava o arvoredo. No solo, estava o grande saco, o que lhe restava da tropa, mais as calças rasgadas e o medo, e as botas, e a raiva. Os insectos tinham-se calado. Que magia era essa?
E então, na opressiva tarde, ouviu-se o primeiro trovão de uma tempestade distante. Como se caísse um morteiro, mas agora já não parecia isso, apenas a inofensiva trovoada no ar pesado.
Antes que começasse a chover, o homem caminhou para a aldeia, a coxear lentamente. Ainda ouviu por algum tempo o riso abafado dos miúdos, que se tinham escondido ali perto.
 
 
 
publicado por Luís Naves às 19:44

link do post | comentar | favorito

.mais sobre nós

.pesquisar

 

.Setembro 2010

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30

.posts recentes

. O seguro

. Uma coisa estúpida

. Passeio com Átila

. Decisão

. Emboscada

.arquivos

. Setembro 2010

. Agosto 2010

. Junho 2010

. Maio 2010

. Abril 2010

. Março 2010

. Fevereiro 2010

. Janeiro 2010

. Dezembro 2009

. Novembro 2009

. Outubro 2009

. Setembro 2009

. Agosto 2009

. Maio 2009

. Fevereiro 2009

. Janeiro 2009

.tags

. todas as tags

.links

blogs SAPO

.subscrever feeds