Segunda-feira, 1 de Fevereiro de 2010

A Floresta cor de sangue

I
Rivaud ouviu um grito e quando olhou para trás, assustado, ainda viu o seu companheiro, Leduc, tombar inanimado. O arqueólogo tinha sido atingido por um insecto e desabara entre arbustos. Embora estivesse nos limites das suas forças, Rivaud correu na direcção do ferido. Descobriu o corpo inerte, o aguilhão cravado nas costas como se fosse uma faca. Leduc agonizava e lançou um derradeiro suspiro, morrendo ainda estendido no chão, sem dar tempo sequer para o jovem biólogo o segurar.
Não havia mais nada a fazer, mas este foi, para Rivaud, o momento de maior desespero. Olhou para a floresta que o cercava, esmagado por uma angústia que até aí jamais sentira. A selva parecia escorrer sangue, amálgama de imensas copas com mais de duzentos metros de altura, um muro de folhas que escondia a luz pálida da atmosfera e se propagava em distâncias que quase não se podia conceber, quando olhado daquele ponto de vista baixo, do chão esponjoso. Formas de espécies não catalogadas, com flores bizarras e perigosos insectos do tamanho de um punho; mas sempre aquela mesma cor vermelha, fantasmagórica e cheia de sombras. Uma molécula semelhante à clorofila, mas púrpura, transformara o mato num peculiar cenário: dir-se-ia que a selva era exclusivamente feita de tecidos longos, hastes e troncos, (pareciam panos tingidos com o mais berrante do roxo ao rosa), raízes que vinham do topo das árvores (cinco vezes maiores do que as mais altas da Terra), e toda a arquitectura da natureza funcionava como uma gigantesca e profunda caverna, onde flutuava um cheiro a podre e um ruído de fundo, poderoso, que lembrava uma sinfonia ameaçadora, interpretada por instrumentos imaginários.
Segurando o corpo de Leduc, Rivaud escondeu-se nos arbustos, atento ao voo dos mortíferos insectos. Por instantes, o biólogo entrou em pânico; mas, com o tempo a passar, começou a acalmar-se. O fato térmico estava rasgado e deixara de o proteger contra a temperatura de 50 graus. Sentia febre. Mal conseguia respirar e perdera demasiada água. Desfalecia, poderia entrar em choque se não se acalmasse, e foi o intenso treino que lhe permitiu ultrapassar aquele momento. Sentou-se, agarrado ao cadáver do arqueólogo, e controlou a respiração, escondido dos velozes insectos sem nome, que zumbiam ainda. E enquanto esperou que passasse aquela tempestade, um pensamento assaltava-o: como pudera aquela expedição correr tão mal?


II

Uma semana antes, um grupo de quatro exploradores tinha descido naquele ponto da selva densa do Planeta Golem. Levavam equipamento suficiente para enfrentarem qualquer perigo, incluindo fatos térmicos que lhes permitiam manter o corpo em temperatura segura e até escafandros. O local da descida não tinha sido escolhido ao acaso. Cinco anos antes, uma sonda automática fotografara o que parecia ser uma construção no meio da floresta sangrenta. Podia ser uma pirâmide, meio oculta na folhagem vermelha, ou uma cúpula de pedra ou ainda uma superfície espelhada que, de alguma forma, reflectia a luminosidade acima das copas do arvoredo. As imagens não permitiam identificar o objecto, mas era sem dúvida artificial. Em certas fotografias, quase parecia uma cara humanóide de grandes dimensões.
Golem ficava fora das rotas das viagens espaciais e tinha interesse remoto, pois não parecia haver recursos estratégicos naquele planeta do sistema de Sirius. Apenas a opressiva floresta, coberta por um efeito de estufa que tornava o clima demasiado quente para o ser humano. Mas a descoberta de traços que poderiam ser de uma civilização perdida mudara a estratégia da exploração. Nos anos seguintes, foram enviadas sete sondas automáticas, mas nenhuma delas conseguiu produzir qualquer dado significativo, excepto imagens de grande beleza da construção, que ganhava novos contornos, algo fantasmagórica e imprecisa. Um facto tornara-se evidente: Golem parecia inexpugnável.
Os voos com levitadores não permitiram reconhecer o local exacto da construção. Ou teria sido engolida pela selva e não estava visível. Ou brilhava apenas em certas ocasiões. Foram usadas técnicas variadas, mas o arvoredo era impenetrável, com três possíveis objectos dispostos em posições distantes um quilómetro umas das outras. Os restos de uma cidade de uma raça estranha? Ninguém sabia.
Por isso, foi enviada uma expedição de quatro homens armados, dispondo de aparelhos de comunicação, alimentos e água. Desceram de levitadores especiais por longas cordas e entraram na selva. Sabia-se a posição das pirâmides ou torres, ou das construções alienígenas; por isso, tinham descido a menos de um quilómetro do local estimado, montando acampamento. Quando encontrassem o objectivo, abririam uma clareira que permitisse poisar aparelhos com mais material e reforços humanos.

 

III

O primeiro a morrer foi Delba, que comandava a expedição. Foi na madrugada do primeiro dia. Rivaud só podia especular sobre o que lhe acontecera. Delba vigiava o acampamento enquanto os outros dormiam. Quando acordaram, tinha desaparecido. Acabaram por encontrar o corpo a uma distância curta. A mão fechara-se sobre o que parecia ser uma flor esplendorosa. Mas uma análise revelou que as pétalas eram venenosas. Porque razão o comandante tocara, sem luvas, na flor?
O que nenhum dos membros do grupo compreendeu foi o motivo porque Delba saíra sozinho do acampamento, contra todas as regras. Teria sido atraído por algum ruído ou fora excesso de confiança do comandante? Vira alguma coisa ou alguém? Morto sem angústia, de face serena, Delba já não podia responder a essas inquietações.
Os três sobreviventes abandonaram o primeiro acampamento, depois de terem enterrado o corpo do comandante. À luz muito diáfana da manhã, a selva de Golem parecia incendiada, repleta de tons baços e formas horrendas, como se fosse carne viva pendurada num talho de criaturas gigantes.
"Um milhão de plantas desconhecidas para podermos baptizar com nomes novos", brincara Bergerac. Foram estas as únicas palavras que gastaram. Lembrando-se do companheiro, avançaram calados, pisando a cobertura esponjosa, (lianas, troncos e pântanos), rumo à construção alienígena.
Nesse segundo dia, perceberam que tinham perdido os aparelhos de comunicação e de orientação. Os primeiros deixaram logo de funcionar, consumidos por um musgo, ou algo vivo e quase microscópico que entrara no interior dos mecanismos e os incinerara; os aparelhos de orientação eram menos relevantes, pois não teriam de caminhar um espaço demasiado longo para chegarem ao objectivo, que devia estar logo ali, quatro troncos mais à frente, escondido pela cerrada vegetação rente ao solo.
Mas, nos dois dias seguintes, procuraram em vão a construção misteriosa, sempre sem avançarem mais do que um quilómetro em qualquer direcção. Andavam em frente, depois inflectiam para a direita e, de novo, para a direita, apenas 90 graus em cada viragem; após três voltas andavam de novo para trás, sempre num padrão semelhante, como se varressem uma quadrícula. Então, começaram a perceber que nunca encontravam os rastos deixados pela anterior passagem. Onde tinham cortado raízes e fendido vegetação com os grandes machetes, havia agora apenas a paisagem imaculada, monótona, como se novo tecido tivesse engolido os seus rastos.
O cansaço começara a tomar conta dos três exploradores. Sonhavam com a pirâmide, imaginavam que ali, naquela selva, estaria enterrada uma maravilhosa cidade de cúpulas douradas, mais bela do que qualquer outra construção no universo, e nesse refúgio poderiam descansar das suas fadigas.
Foram sendo tomados de alucinações. Bergerac enlouqueceu ao sexto dia. Começou a rir-se muito alto, histérico. Numa ocasião, sem aviso, embrenhou-se no mato espesso. Não o viram mais. Apenas o riso insensato, que parecia provir de várias direcções ao mesmo tempo. E, quando chegou a noite, trazendo o fumo rasteiro da decomposição dos tecidos, o cheiro ácido da putrefacção, Leduc e Rivaud ouviram de súbito um grito pavoroso, que irrompeu daquela paisagem de camadas decompostas, onde apenas a morte triunfava.
Já não procuravam nada, quando foram surpreendidos pelos insectos do tamanho de um punho. Limitavam-se a percorrer uma espécie de labirinto mental, sem rumo ou sentido, apenas marchando, já sem forças, um passo a seguir ao outro, como náufragos numa rotina.

 

IV
Rivaud pensou em ficar no local onde Leduc tombara. Permaneceria naquele exacto lugar até que chegasse a expedição de salvamento. Mas os murmúrios da selva de sangue prosseguiram na mesma entoação de um cântico fúnebre. E o corpo do amigo tornara-se desagradável, coberto por uma espuma, ou seria uma película de um líquido fétido, cuja podridão o contaminava também a ele, com o seu cheiro enjoativo, colado aos dedos, entranhando-se pela pele dentro.
E, quando o desespero já assentara no espírito cansado, emergiam na sua memória as imagens indefinidas daquilo que poderia ser uma construção em forma de cara humanóide, olhando o espaço, ou uma torre, ou uma pirâmide espelhada, a reflectir a vaga luminosidade pálida daquele planeta excessivo.
Acordado pela beleza das imagens, Rivaud ganhou energia para continuar a marcha. Deixou o corpo do arqueólogo escondido por folhas mortas e prosseguiu. Andou durante um tempo que lhe pareceu prolongar-se por muitas horas, cada passo um novo tormento, cada fibra do corpo a protestar com dores, pela desidratação, a febre, o cansaço.
Quando chegou a noite, escalou a um ramo de uma árvore e amarrou-se com a corda que lhe restava. Apesar do desconforto, conseguiu dormir. Sonhou com pirâmides e torres imaginárias, caras alienígenas e também, confusamente, com os nomes de fantasia que tinha escolhido para todas aquelas novas espécies de plantas, que ninguém conheceria jamais. E, quando despertou, ao raiar de uma luz que pairava como se fosse poeira, lembrava-se apenas de farrapos do sonho.
Depois, seguiu o caminho. De novo, as botas afundando-se na matéria esponjosa do solo, o cansaço a anunciar cada movimento, um vapor que parecia sair do seu corpo, a água restante, que se perdia para a humidade geral, como se as suas células fossem os únicos tecidos a secarem naquela armadilha.
E, de súbito, viu um movimento, alguns metros à frente. O que lhe pareceu um homem a andar entre a folhagem. E ouviu distintamente o ruído de machetes que cortavam a selva. O seu coração bateu mais forte, assaltado pela esperança de ser encontrado pela missão de salvamento. Mas logo essa alegria entrou em colapso, ao distinguir, naquela distância, duas figuras de homens, as cores do uniforme iguais às suas: eram ele e Leduc!
Sim, ele, Rivaud, a abrir caminho entre ramos soltos; e, atrás, Leduc, com uma expressão de angústia, o olhar desvairado e perdido. Antes de estar morto!. Uma cascata de emoções tomou conta das suas percepções, mas a visão fora breve, já os dois náufragos desapareciam numa neblina, sem lhe dar tempo para gritar.
Rivaud ainda andou à deriva durante muito tempo, uma eternidade. A floresta de sangue estava repleta de ecos. E, de súbito, foi inundado por uma onda irresistível de cansaço. Encostou-se a um tronco e ficou ali, à espera. Estava a morrer e sabia disso. Então, na derradeira hora, quando lhe restava a desistência, teve um relance das construções misteriosas. Estavam talvez à sua frente, a dez metros. Viu a superfície lisa de uma parede que brilhava, mas a imagem não era estável, parecia animada por uma ondulação de neblina que lhe mudava subtilmente os contornos. Era perfeita, pensou Rivaud, maravilhado com a descoberta. Igual ao sonho que sempre procurara, a quimera inexistente, a inatingível perfeição humana, o tesouro inalcançável, o cerne da alma. Uma miragem.
E, finalmente feliz, em paz consigo mesmo, Rivaud deixou-se flutuar na direcção da morte.

 

(Um conto antigo, sem alterações)

 

publicado por Luís Naves às 20:17

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Sexta-feira, 11 de Setembro de 2009

Nevoeiro

 

No denso nevoeiro, ele deixara de ver os objectos na sua proximidade e o mundo em redor ganhara brilho etéreo e consistência disforme.

Largado ao acaso pelo caminho, tentou não abandonar a precária vereda de lama, até distinguir com alívio o vulto indefinido da paragem do autocarro a emergir naquela sopa cinzenta.

A paragem estava num ermo desabitado e tinha uma pequena construção (aberta em dois lados, com o banco corrido ao meio); ficava fora do bairro de Santa Luzia, cujos prédios altos pareciam ter mergulhado num oceano imóvel, sufocados na profunda distância.

Toda a gente conhecia os horários dos autocarros. Para chegar à estrada, os habitantes tinham de atravessar o campo, caminhar algum tempo por terrenos onde apenas cresciam umas ervas ralas.
Quando atingiu a estrada, reparou que na paragem estavam três pessoas: um velho, uma rapariga e o seu vizinho do mesmo prédio, que trabalhava na fábrica ao fundo, a meia hora de viagem.

“Ah! És tu?”, atirou-lhe o vizinho, apesar de tudo sem aparente interesse no que dizia: “Parecias um fantasma”.

Era um homem dos seus 50, corpulento e grave, que nunca metia conversa. Dessa vez, encolheu os ombros e continuou a falar, talvez para afugentar alguma má sensação:

“Vimos uma forma que se aproximava de nós e nem parecia de uma pessoa”.

“Era só eu, não havia mais ninguém”.

“Este nevoeiro assusta”, disse a rapariga. “Até parece que abafa tudo à nossa  volta”. Olhou para o recém-chegado, que deitou uma gargalhada curta:

“Está tudo bem, não se preocupem”, disse ele.

Depois, ficaram os quatro em silêncio. A rapariga era estudante, devia ir para o liceu; o velho tiritava de frio, sentara-se no banco corrido, como se tivesse falta de ar.
“Quando chega o autocarro?”, perguntou o recém-chegado.
“Meia hora de espera!”, explicou o operário. “Isto está cada vez pior”.
Queria dizer o serviço, mas era homem de poucas falas.
Não apareceram mais passageiros. O nevoeiro adensara, sólido muro a separá-los do bairro, cujo rumor se dissolvera no nada. A humidade dificultava a respiração e o frio produzia uma dor de fundo, como se tivessem sofrido um espancamento minucioso. O tempo por vezes acelerava, depois sofria síncopes fragmentadas e parecia prolongar-se além da atmosfera liquefeita.
“Não podemos ficar eternamente aqui isolados”, disse o recém-chegado. “Talvez haja alguma greve ou provavelmente pararam o serviço por causa do nevoeiro”.

A rapariga concordou, com um gesto que dizia tudo sobre a sua angústia.
“Temos de ser pacientes. O autocarro deve estar mesmo a chegar”, resmungou o velho.
Tentaram ouvir algum barulho de motor que se aproximasse, mas além do nevoeiro havia apenas o indefinível e a estrada vazia.
“Silêncio de morte”, disse o recém-chegado, repetindo a expressão que lera num livro.
“Como se isto tudo fosse tirado de um sonho mau”, interrompeu o operário, que não era dado a metáforas.
“Uma hora à espera do autocarro não é normal. Vou regressar a casa”, disse de repente o recém-chegado, após uma pausa longa.

“És capaz de ter razão, já não há autocarro, mas eu preciso de ir trabalhar”, afirmou o operário.

“E como saímos daqui, se não se vê nada?” perguntou a rapariga, um pouco aflita.

“Vamos pelo mesmo caminho, a olhar onde pomos os pés. Não deve haver azar”, decidiu o recém-chegado, que avançou para o exterior da paragem. E a rapariga seguiu-o de perto. “Não me deixe para trás”, implorou.
Passou mais tempo. As sombras dos dois jovens tinham desaparecido na bruma espessa. O operário cansou-se:
“Vou seguir pela estrada”, anunciou, dirigindo-se ao velho: “Venha daí também”.
“Prefiro ficar, o autocarro não tarda”, respondeu o velho.
O operário encolheu os ombros e lançou-se à caminhada.
Pouco depois, meio espantados, o operário, o recém-chegado e a rapariga saíram do nevoeiro. Encontraram-se, confusos, na margem da neblina e num prado imenso de onde se avistavam os prédios da orla do bairro, muito iluminados e com o seu ruído próprio de corpo vivo.

Sem transição, o nevoeiro desaparecera. O operário começara a descer a estrada e os dois jovens tinham seguido pela vereda no descampado, mas agora estavam juntos, como se tivessem escolhido o mesmo caminho.

“O nevoeiro era só naquela parte da colina. Afinal, deve haver autocarros”, disse o operário.

“Não estou a ouvir nada...”, atalhou o recém-chegado.

“É melhor regressarmos, ainda perdemos o próximo”, insistiu o operário.

Regressaram os três ao ponto de partida, até correram. O sol regressava e viram as pegadas que tinham deixado na vereda de lama, até que já não havia pegadas, apenas o mesmo caminho desolado. E quando chegaram à paragem de autocarros, o local estava silencioso e vazio.

Restava uma ligeira névoa dissipada e o idoso desaparecera.

Ainda se perguntaram quem seria o velho e para onde tinha ido, mas nenhum deles sabia.

Não o voltaram a ver. Perguntaram a outras pessoas, mas não havia palavras que o descrevessem com precisão. Talvez nem estivesse na paragem, afinal, e todos esqueceram aquele episódio, a forma estranha como o nevoeiro levantara, aquele velho que ficara para trás e, que momentos depois, já não estava ali.

O caso foi sendo esquecido com o tempo, mas o mais estranho é que, por vezes, na paragem de autocarro no campo ermo à beira do bairro de Santa Luzia (apenas em tardes de vento sóbrio) parece aos viajantes mais sensíveis que alguém diz “não tarda, não tarda”, como se fosse um sussurro que primeiro está ali e depois já não está.

Mas, enfim, tudo pode não passar de uma simples lenda ou de bizarra ilusão sonora que o vento produz sem razão.

 

(Adaptação de um conto publicado em Dezembro de 2006 no blog Prazeres Minúsculos) 

 

publicado por Luís Naves às 14:44

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Segunda-feira, 17 de Agosto de 2009

Vincent

 

O robot M36-42B aprendeu a pintar apenas três meses depois de ter saído da fábrica. Os engenheiros não deram muita importância a esse desvio da função primordial da máquina, que era a de despachar impressos de modelo A nas Finanças. “Ele começou a imitar os humanos”, concluiu um dos engenheiros, “deve ter visto alguém a pintar, talvez num programa de televisão”. Assim, foi permitido a M36-42B ocupar algum do seu tempo livre com telas e pincéis e tintas, já que não podia ocupar-se de sonhos. Comprava o material com o próprio salário (os robots recebiam pequenos estipêndios, para comprarem roupa, por exemplo, o que também fazia circular a economia).

Naquela época, estas máquinas (pelo menos as deste modelo) eram construídas para não durarem muito tempo, três ou quatro anos, no máximo. Os robots eram parecidos com pessoas, mas desengonçados, de ventres largos e pernas curtas. Muito feínhos, ocupavam-se de tarefas menos inteligentes.

 

Durante um ano, M36-42B pintou paisagens e naturezas mortas, mas em certo dia começou a alterar o seu trabalho e a pintar cenas onde surgiam figuras humanas, desenhadas com toda a perfeição. Em telas medianas, geralmente rectângulos com pouco mais de meio metro no lado mais comprido, o engenhoso robot usava uma paleta rica, baseada em vermelhos, azuis-da-prússia e verdes de variadas matizes, magentas, ocres, enfim, cores alegres e vivas; tentava também fixar a textura cromática da pele e os seus reflexos elaborados; e, acima de tudo, era muito delicado na composição das cenas; por vezes pessoas sentadas em cafés, gente bonita a passear nos parques da cidade, ou ainda em poses banais do quotidiano, a comprarem flores ou sem nada de especial para fazer, numa conversa, numa tarefa doméstica, aparentemente tranquilas e pacíficas, sem pressa; iniciando o gesto de querer dizer alguma coisa, um pequeno segredo, a confidência, a banalidade; havia quadros onde surgiam humanos à janela, a observar quem passava, ou velhos trocando ideias, crianças a correr, pessoas a comer, com alegria, ou mimando animais de estimação.

 

Em certa ocasião, o robot começou a pintar o que pareciam ser outros robots, desengonçados e feios. Mas, em vez de os retratar em trabalhos cansativos que concluíam sem emoção, ou seja, a realidade, M36-42B colocava-os em poses de conversas aparentemente humanas ou no que pareciam ser cenas de pacata existência sem utilidade visível. Estas novas figuras não pareciam estar a fazer qualquer coisa, a trabalhar ou exercitar as funções próprias do género, o que era bem insólito.

Numa das telas, por exemplo, um pássaro poisara na cabeça de uma destas personagens e o que parecia ser o robot (tinha ar atarracado e feições monstruosas) sorria tão absolutamente que se poderia pensar no retrato de uma máquina que experimentava uma emoção de felicidade, ao ter o pássaro poisado na sua cabeça. Era quase inquietante.

Nesta altura, as telas começaram a ficar mais luminosas, com cores mais irreais, desenho mais impreciso, composições mais complexas. Algumas pessoas começaram a ficar interessadas no tema e a discussão espalhou-se. Era arte ou imitação?

 

Um dia, apareceram dois homens no pequeno estúdio que o robot usava para o seu trabalho de pintor. Era um conhecido crítico que acompanhava um importante negociante de arte. No caminho, os dois homens tinham discutido o assunto, mesmo antes de verem as telas:

“Os pintores sempre procuraram muita coisa”, dissera o crítico, “da impressão do momento ao ponto de vista de Deus que tornava a humanidade toda igual, como um disciplinado rebanho. Mas há um ponto em comum a todas as épocas: a busca essencial do ser humano, da nossa alma, quero dizer. Os robots são máquinas e, por definição, não possuem alma. Como podem eles procurar algo que não entendem à partida?”

“E nós entendemos?”, perguntara o negociante.

Os dois desconhecidos entraram no estúdio e começaram a observar o trabalho de M36-42B. O crítico apreciava o seu interesse formal, enquanto o negociante avaliava o potencial valor. Cada um via coisas diferentes e o crítico era ainda o mais céptico. Quase desdenhoso, gozando um pouco, fez algumas perguntas ao robot. Porque escolhera aquele tema; e a máquina respondia de forma evasiva:

“Posso chamar-te Vincent?”, perguntou a certa altura o crítico, embora estivesse com vontade de rir.

“Nós, os robots, não temos nomes”, respondeu M36-42B.

“Os vossos números de série são complicados e esqueci-me do teu. Chamo-te Vincent…”

“Se quiser…”

Dirigindo-se apenas ao negociante, o crítico ia comentando em voz alta e falava como se Vincent não estivesse ali:

“Veja esta pintura”. (Era uma tela que mostrava um ser aberrantemente feio a rir-se de nada). “É como eu lhe dizia há pouco, a imitação da busca do conteúdo puro, da essência do objecto, mas apenas como simulacro. Se todos os artistas devem tentar apanhar alguma coisa de universal e eterno, que pode haver de universal e eterno numa máquina que pensa estar feliz. Que pode um robot saber da verdadeira felicidade? Mas perguntemos ao artista: Vincent, que sabes tu da felicidade?”

O robot procurava as palavras:

“Vejo pessoas felizes na rua”, disse, hesitando.

“Mas já sentiste a felicidade  ou outra emoção qualquer, por muito básica? Medo, inveja ou desprezo?”

Houve um silêncio penoso, que o próprio crítico quebrou:

“Vejo que não. A pintura humana é a busca de qualquer coisa, de uma ideia, por exemplo, mas sobretudo a procura da perfeição do humano”. No meio da prelecção, o homem segurava outra tela, esta mostrando dois robots sentados num jardim e que pareciam (loucura), pareciam apaixonados um pelo outro; e a cena estava desenhada com formas quase incorrectas:

“Se a máquina pode desenhar com perfeição geométrica, então porquê estas imperfeições evidentes? O que procuraste neste caso, Vincent? Que a emoção humana aqui transferida toscamente para duas imagens é absolutamente imperfeita? Ou que do ponto de vista do robot, aquilo que é humano equivale à imperfeição?”

“Queria contar a forma como os dois conversavam, a maneira simples…”

“Mas isto não é real, apenas errado. Será que procuras a imperfeição? Como se houvesse uma vida oculta e mais perfeita nos robots?”

“Sim”, respondeu Vincent, mas sem que se percebesse a qual das duas perguntas respondera.

Os dois humanos ficaram calados.

“É pena não poderes perceber o que é ser humano”, disse o crítico, “mas esta imitação de arte é sem dúvida interessante, como entertenimento”.

O negociante também se despedia. Decidira não avançar com uma exposição do trabalho, pois não queria polémicas.

 

Nas seis semanas seguintes, Vincent iniciou várias telas, mas não conseguiu terminar nenhuma delas. Tentava desenhar, mas não acabava os traços, pois deixara de saber por onde seguir. E as cores escolhidas pareciam-lhe desadequadas; depois, tentava desfazer tudo e recomeçar, mas era como se tivesse perdido o impulso que antes o fizera pintar robots vivos e surpreendidos, que tentavam descobrir no mundo um sentido para a sua existência interior.

Ao abrigo de um privilégio na altura ainda bastante utilizado, R36-42B pediu para ser desmantelado, o que se concretizou dois meses depois da entrevista.

Muitas das suas peças foram reutilizadas em modelos mais avançados.

 

 

publicado por Luís Naves às 21:03

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Terça-feira, 11 de Agosto de 2009

As veredas

 

Todas as noites, terminadas as aulas do liceu, o professor de física regressava a sua casa e cortava pelo atalho no parque para ganhar alguns minutos. Vivia sozinho, mas não gostava de perder tempo e o passeio ajudava-o a pensar em coisas estranhas, na consistência do cosmos ou em mundos paralelos. Dessa vez, tivera um pressentimento funesto, que se acentuou com as sombras densas do arvoredo, que o vento fazia esbracejar, tal qual uma multidão de alucinados discursos. Mas o ligeiro medo não foi suficiente para ele decidir fazer o caminho mais longo. Como sempre, tinha pressa. Prosseguiu com a rotina metódica, apesar da má sensação que se lhe colara ao corpo. Apenas protegeu mais o peito, fechando o casaco de Outono (demasiado leve) com as duas mãos, assim unidas numa espécie de reza, e lançou-se pela vereda escura, sem mais hesitações, passo acelerado, a cabeça inclinada para um chão que mal se via.

A travessia pareceu durar mais tempo do que era habitual. Tudo ondulava à sua frente, como um grande mar agitado, e a luz difusa que vinha dos candeeiros públicos da estrada, mais além do parque e cada vez mais longe, apenas sublinhava o clima confuso da floresta do parque público, a sua entranha em túnel e a cinzenta escuridão que o engolia num tumulto. Também devia ser assim o turbilhão do espaço primordial, pensou, com nitidez distraída.

De súbito, sentiu-se flutuar. Tropeçara e caiu, mas como que em câmara lenta, sentindo todo o percurso até ao chão. Os pensamentos estatelaram-se com ele e teve na boca a amargura do solo húmido. A nuca doeu-lhe de forma aguda e as mãos esfoladas pareciam ter mergulhado em ácido; durante algum tempo (a imprecisão do quanto) não viu mais nada, nem sentiu mais nada, nem cheirou ou tocou mais nada. Fora arrastado num abismo de nada e deixou-se arrastar.

O corpo dorido estendera-se na relva do caminho (seria relva esponjosa?) e percebeu que se suspendera a dança das ramagens; as folhas das árvores, subitamente amansadas, pairavam num contraste de escuro negro com fundo azulado escuro. A luminosidade do próprio tempo, meditou, a qual respirava do fundo dos tecidos fragmentados do mundo. Deixou-se levar nestas ideias, embalado na noite, encantado com a maneira como suavizara a ventania. Foi então que sentiu a música, que vinha de um recanto do parque. E viu os farrapos de luz eléctrica e as sombras. E ouviu os risos de gente. Iria lá pedir ajuda. Afastou o cobertor de folhas que tinha em cima.

Nem soubera que nessa noite havia festa no parque. Era um facto surpreendente. Sem o vento, a temperatura tornara-se amena. Abandonou a vereda e passou por entre as folhagens (o chão de folhas derretia-se sob o peso, numa carícia), abrindo caminho entre arbustos, e tornava-se mais intensa a música e mais brilhante a luz. E ali estava, perante a sua surpresa, a clareira cheia de gente feliz, de barracas de divertimentos e bebidas, carrosséis, famílias em passeio, a confusão habitual das festas da cidade. Que eram sempre no Verão.

E pensou, com clareza, como era estranho não ter sabido.

Avançou na direcção das pessoas.

Toda a gente vestia roupas leves e ouviam-se pedaços de conversas: vem cá anuska, não gosto dele, apetece beber; e a música tocava, bonito como o raio; quero ir ao carrossel, ficamos mais um pouco, a mãe disse…, quase no final…, um filme muito…, tens de ler…, demasiado caro…; o cheiro imenso do açúcar e da cerveja derramada; e a música prosseguia, lenta; anuska não te percas; e a banda soprava no estrado e viu os músicos que suavam como se saíssem da piscina; e nem uma folha do arvoredo bulia, (como compreender o frio?) e o céu estava limpo e estrelado por cima, abóbada perfeita e solene; e ao longe um sino; e flutuavam anjos; vem cá, minha estúpida, gritou alguém.

Ao entrar no meio da multidão que se acotovelava, viu que algumas pessoas olhavam para ele com reprovação; bêbado, neste estado, coitadinho; e que se afastavam.

E foi num incerto momento que ficou em frente a uma mulher que o olhava de forma insistente, como se fosse míope: era morena e bonita; cabelo à garçonne; em roda de trinta anos; blusa vermelha decotada; um corpo redondo e cheio, a saia comprida, calçava sandálias. Pareceu-lhe tudo isto, mas viu sobretudo a expressão de horror, ou melhor, de surpresa e espanto:

“Que estás aqui a fazer? Como é que mudaste de roupa?”, disse ela, voz muito aguda.

Ao lado da desconhecida, caminhava um homem alto:

“Cláudia, o teu marido é maluco. Como é que os alunos o aturam?”. O tipo apontara na direcção dele, professor de física, que saíra de uma vereda ventosa num parque vazio para deparar com aquela impossibilidade. E, por uma qualquer magia, os dois desconhecidos sabiam quem ele era, e a mulher que se chamava Cláudia (assim dissera a outra figura) seria a sua própria mulher (que não tinha).

“Isto é impossível”, disse o professor, sem nexo, cheio de frio, a segurar o casaco.

“Vinhas atrás de nós”, implorou Cláudia, à beira da histeria.

“Mundos paralelos”, gaguejou, “caminhava a pensar neles, outros universos, mas é precisa demasiada energia…”

Não podia explicar.

“Cláudia, o teu marido está bêbado”, disse o desconhecido, a rir-se. Pareceu-lhe que rira maldosamente. Com sarcasmo e ciúmes, talvez.

E, de súbito, numa angústia, a mulher apontou o dedo e gritou o nome dele. Como é que o conhecia, se nunca se tinham encontrado? E foi então que… sim, não havia dúvida, era ele mesmo, o professor de física, mas noutro tempo ou noutro universo, a caminhar de trás, no meio da multidão, ainda a dez metros de distância, a aproximar-se; vestia uma camisa suada, ainda não o vira a ele, o viajante surpreendido no presente, mas então os olhares cruzaram-se, ou melhor, a personagem que era o outro eu irreal viu-se a si mesmo, (eu consciente) embrulhado num casaco de Outono e cheio de frio e dores na cabeça…

O mundo explodia e o professor não conseguiu enfrentar aquela realidade impossível: virou-se, fugiu da luminosidade, em direcção da noite. E ainda ouviu, durante algum tempo, Cláudia que gritava mais vezes o seu nome, e vozes confusas e a música que se diluía.

Voltou o breu à volta e ergueu-se de novo o vento. Tropeçava e doía-lhe a cabeça, mas continuou a caminhar. Deixou de ver, mas as pernas moviam-se, mecanicamente; até que chegou ao fim do parque. Havia uma estrada, à esquerda, mal iluminada, excepto a luz de uma paragem de autocarro. O vulto de uma rapariga, numa gabardina creme. Ela sentara-se na paragem, sozinha. À espera do último autocarro, pensou o viajante. Caminhou para ela, cambaleou, e viu como a rapariga se assustava com aquela figura que emergia de súbito da noite, como fazem os assassinos.

Ela ainda tentou fugir, mas ele pediu-lhe ajuda, e a voz débil convenceu-a:

“Ajude-me, sou professor do liceu…”

“Que se passa?”

“Tive um acidente, talvez um ramo em queda…”

E o professor de física, muito racional, deitou-se no chão. Agora, tudo era evidente e voltava a fazer sentido: um ramo de árvore batera-lhe na nuca e tivera uma alucinação luminosa, onde apareciam pessoas fictícias. Apesar da escuridão, a mulher da gabardina creme viu o sangue que jorrava da cabeça dele e o homem balbuciava alguma coisa sobre a festa no parque, a luz e a banda, e que imaginara tudo, até se riu no delírio, mas ela não percebeu nada do que ele dissera, pois o parque estava vazio. A mulher julgou que o desgraçado enlouquecera.

“Foi tudo imaginação minha”, conseguiu ainda dizer o professor de física, mas numa voz tão fraca que ela se aproximou para ouvir.

E foi nesse instante, quando a rapariga se moveu e a pele dela ficou iluminada pelo candeeiro público, que o homem viu com nitidez a cara dela: era a mesma morena que encontrara na zona de luz, na festa improvável, a do cabelo à garçonne, que o outro desconhecido afirmara ser a sua própria mulher. Exactamente a mesma.

“Cláudia”, balbuciou, num arrepio…

Ela abafou um grito, depois chegavam outras pessoas, ouviu-se a sirene da ambulância e, antes de ser levado para o hospital, ainda ouviu a rapariga da gabardina creme a explicar a um polícia, com a sua voz inconfundível e, agora, demasiado familiar:

“Eu não o conheço, nunca o vi, mas ele sabia o meu nome. Disse que era professor do liceu. É muito estranho, chamou por mim várias vezes”.

 

   

publicado por Luís Naves às 15:01

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Sexta-feira, 30 de Janeiro de 2009

Uma situação nova

 

“Para mim, esta é uma situação nova”, disse o robô.
O engenheiro continuou a ajustar as correias, sem prestar demasiada atenção; limitou-se a balbuciar qualquer coisa desnecessária, acrescentando o nome da máquina, “esteja quieto, RX-45-99”.
Sentiu a postura subitamente rígida do robô:
“Há muita coisa que nunca compreendi nos humanos: a angústia da morte e da dor”, afirmou, de súbito, RX-45-99, na sua vozinha estranha.
O engenheiro quase deixou cair os instrumentos de medição. Nunca ouvira um RX a falar assim. Sentiu-se na obrigação de o repreender: 
 “É natural, não passas de uma máquina. O teu sistema nervoso é diferente do nosso e não há maneira de compreenderes”.
O engenheiro dissera aquilo com uma ponta de ansiedade irritada. Estava surpreendido. Parou de ajustar os equipamentos da experiência e afastou-se para observar a folha do robô e como ele chegara ali. O que leu deixou-o ainda mais espantado. Regressou, mas ainda não lhe passara a nervosismo:
“Diz aqui que eras um operário filósofo”, agitou a folha à frente da máquina. Pela primeira vez observou RX-45-99: igual aos outros, enfim, máquina descartável, obsoleta, a cara imóvel e o olhar vazio, a superfície plástica e muito polida do crânio, o pescoço fino, com as vértebras visíveis.
O robô estava preso pelas correias, muito rígido, mas parecera distender o corpo e começou a falar:
“Na minha fábrica, formámos um clube de discussão de filosofia. Chegámos a ser vinte máquinas, cada uma com o seu filósofo. Agora, restavam três de nós, que foram vendidos. Eu chamo-me Cícero. E qual é o seu nome, humano?”
“Os robôs não deviam ter nome, só os humanos é que têm direito a isso. Mas se queres saber, eu chamo-me Barry”.
O robô pareceu ficar mais direito ainda. Via-se que gostava de falar. Foi ele a continuar a conversa:
“Eu gosto de citar Cícero, que foi um grande sábio. E fiquei com esse nome. Os meus colegas eram o Espinoza, que foi desmantelado na semana passada, e o Hegel, a quem tiraram algumas peças e que depois de perder a memória rígida foi guardado num armazém”.
“Foram os três vendidos...”
 “Havia falta de verbas. Disseram que não havia dinheiro para manter três máquinas a especular inutilmente. Foi uma questão económica, de produtividade”.
“Claro, os robôs não servem para especular”.
Cícero ficou pensativo. Depois, disse, com uma ponta de orgulho:
“A minha venda rendeu mais dinheiro porque esta função terminal é muito valorizada na vossa sociedade”.
O engenheiro ficara silencioso e Cícero aproveitou para continuar a falar. Parecia estar programado para ter prazer na conversação:
“Sabendo embora que serei útil, não deixo de ter curiosidade em relação ao momento em que a vida finita se vai separar desse outro momento incompreensível e talvez infinito a que alguns de vocês, humanos, chamam o além. Haverá tempo para compreender, é o que espero. Se a transição se prolongar por mais de um nanossegundo, poderei talvez recolher a informação suficiente, pois os meus circuitos são capazes de analisar biliões de permutações nesse curtíssimo espaço de tempo. Enfim, a passagem da existência para a não existência terá de durar algum tempo...”
“É uma coisa ou outra e, por isso, não há transição nenhuma...”, interrompeu Barry.
“Se existem dois estados distintos, existirá uma transição. Curioso problema, de qualquer forma”, disse o robô. “E estou entusiasmado, por me encontrar tão perto de o resolver. Os meus amigos Hegel e Espinoza já devem saber a verdade. E como um dia disse o meu mestre Cícero, ‘aquilo a que chamamos prazer é a ausência da dor’, e se nunca senti a dor, então a minha existência foi um longo momento de prazer, algo que tu, Barry, infelizmente não sabes, apesar de seres tão brilhante como forma de vida, pois o teu corpo imperfeito sofre dores constantes”.
O engenheiro acabara a tarefa de colocar todos os sensores para medir a intensidade dos choques. Com um sarcasmo que o surpreendeu, o engenheiro ouviu-se a dizer:
“Filósofo ou não, tu não passas de uma máquina a bordo de um veículo que vamos fazer chocar contra uma parede, para testar a sua segurança. A ideia é ficares desfeito”.
“Se na morte sentir dor e angústia, então poderei finalmente compreender o imenso prazer que foi a minha vida, naquele nanossegundo da transição em que não acreditas”, respondeu o robô.
 Barry carregou no botão. O veículo avançou a uma velocidade vertiginosa na direcção da parede. Houve um tremendo choque e o robô, movendo-se como um boneco desarticulado, bateu violentamente na chapa deformada, nos vidros estilhaçados e nos ferros que se esmagavam.
No chão, no meio da amálgama de destroços, ficou um corpo informe, os pedaços de RX-45-99.
Barry pegou numa peça solta e inerte e, por um breve instante, mesmo breve, pensou se Cícero teria ou não compreendido o mistério final da condição humana.
 
  
publicado por Luís Naves às 12:28

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Quinta-feira, 15 de Janeiro de 2009

Um leve cheiro a ozono (primeira parte)

 

“A minha mulher enrolou-se com aquele tipo, mas foi estupidez, porque não passa de um zé-ninguém sem ter onde cair morto”, disse Maddox, com o olhar fixo no fundo do copo.
O empregado estava inclinado sobre o bar, as mãos estendidas, o pano sobre o ombro. Limitou-se a sussurrar ‘isso é aborrecido’ com a ponta da língua, e a inclinar a cabeça, ar cúmplice, como se compreendesse tudo demasiado bem.
“Pois é, Mac, ela explicou que eu já não lhe interessava muito, ‘engordaste como um porco’, disse ela, mas claro que é estupidez, e para mais o outro tipo é um brutamontes, um verdadeiro armário, nada de subtileza ou miolos. Não percebo o que é que ela viu naquele bronco...”
Maddox continuou a dissertar naquele exacto tom durante vários minutos. O empregado ouvia disciplinadamente, sem se mexer:
“Viver é uma chatice”, prosseguiu Maddox, “e as coisas não prometem melhorar. Vocês fazem todo o trabalho e nós não temos nada para fazer. O governo subsidia o nosso estilo de vida, como aliás lhe compete, porque nós é que votamos. Mas limitamo-nos a estar ali, a passar o tempo, percebes? Redundantes, mas dóceis. No fundo, devíamos trabalhar; mas, enfim, depois o que íamos nós fazer?”
“Isso é aborrecido” respondeu o empregado.
“É isso, Mac, é uma vida aborrecida”.
Maddox terminara a bebida, parecia satisfeito. Levantou-se, vagamente inebriado. Pagou e saiu. Um empregado bem simpático, pensou, bem inteligente, aquele Mac, para um robot. Pena aquele leve cheiro a ozono.

 

(...)

publicado por Luís Naves às 12:58

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Um leve cheiro a ozono (segunda parte)

(...)

Maddox desceu a avenida, mas o calor era intenso e a força da gravidade parecia mais forte após ter bebido dois copos. Hesitou em relação à caminhada. Depois, decidiu prosseguir de autocarro. Vinha um na mesma direcção. Fez sinal e entrou no veículo, que parara a seu lado. Estava lotado atrás e havia poucos lugares na parte da frente. Aquilo fez regressar a sua irritação, a ponto de exclamar: “Que chatice!”.
Ainda por cima, no melhor lugar sentava-se uma robot; gira, por sinal, loura e de perna longa. Maddox fez sinal para ela se levantar. A robot olhou para ele, implorou:
“Estive de pé quase 12 horas, no meu trabalho, deixe-me ir sentada”, disse ela.
Maddox ficou um bocadinho escandalizado. O atrevimento da tipa.
“E o que é eu tenho a ver com isso? Cansaço é defeito de fabrico”. E, num tom implacável, ordenou: “Sou humano e eu é que sei o que é estar cansado. Faça favor de se levantar”.
A jovem robot obedeceu. Ergueu-se (era alta e agradável de corpo) e foi para trás do veículo, onde alguém lhe cedeu o lugar. Maddox ocupou a janela e, por um momento de alucinação, julgou ter visto no olhar dela um ligeiro vexame ou que lhe pareceu ser leve emoção de censura. Sentiu que outros olhares se cravavam na sua nuca. As máquinas reprovavam a sua insistência no cumprimento da lei. E teve de se esforçar para voltar à razão: os robots não se ofendem, que tolice.
Nesse regresso à realidade sentiu o ligeiro cheiro a ozono que a loira deixara no assento e amaldiçoou a ideia de ter apanhado o transporte público colectivo. Podia ter apanhado um táxi, enfim. Era um problema que não se conseguia resolver: o mau cheiro deles, os robots que faziam todo o trabalho.
 
 
Quando chegou a casa, Maddox percebeu que a mulher também lá estava. Aquilo contrariou-o um pouco, pois não lhe apetecia ter uma discussão inútil.
Por isso, foi para o quarto, levou uma pizza e nem sequer saiu, para evitar encontrá-la. Acordou na manhã seguinte.
Estava estremunhado, esquecera-se da mulher e o choque com ela foi inevitável. Encontraram-se na sala, próximo da televisão de superplasma, onde passava o popular programa “desmantela o teu robot”. Um tipo enorme (faz lembrar o amante dela, pensou Maddox, enojado) partia as pernas a uma robot, bastante gira, por sinal, e que desatou a gritar de forma horrível. As pessoas aplaudiam imenso. Foi então que Maddox reparou que a sua mulher estava ali ao lado, a olhar para o programa de TV, mas parecia estranha, de olhos muito abertos e respiração pesada:
“Estou a sentir uma dor de cabeça horrível”, disse ela.
“Eu é que devia ter uma dor a cabeça”, sugeriu Maddox.
“Tens de me levar ao hospital. Há um problema com o meu microchip”.
“Qual microchip?”
“Não disse nada porque nunca irias concordar, mas enxertei um microchip para estimular o prazer, mas agora nem sequer me consigo sentar...”
Ela parecia aflita, mas Maddox não sentiu piedade. Aqueles microchips custavam para cima de dez mil dólares.
“Não faças essa cara, era de contrabando”, gritou a mulher.
Mesmo assim. Estavam finalmente explicados os buracos na conta bancária conjunta.
“Preciso mesmo que me leves ao hospital”, implorou ela.

 

(...)

publicado por Luís Naves às 12:55

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Um leve cheiro a ozono (terceira e última parte)

(...)

A sala de espera estava vazia, excepto o robot que esfregava o chão. Uma máquina da última geração, que conseguia cumprir um horário de 65 horas semanais. A esfregona fazia pouco barulho e Maddox passou pelas brasas. Estava relativamente preocupado, apesar de tudo. Nada dissera à mulher, mas também ele decidira enxertar um microchip para excitar os centros neurológicos de prazer; escolhera uma marca branca e estava a pensar pedir o reembolso: por vezes sentia um ligeiro impulso que era quase exaltação, mas de resto nada lhe dava qualquer prazer ou sequer uma sensação efervescente, por mínima que fosse. Tratava-se de uma avaria, sem dúvida.
A médica que veio ter com Maddox era do tipo sofisticado. Reconheceu-a: era a robot loura platinada que vira no autocarro e a quem ordenara que lhe cedesse o lugar. Revelou-se uma beldade de falinhas mansas. Ela não o reconhecera, felizmente. Começou com rodeios, tipo a operação à sua esposa correu de forma satisfatória. Maddox perguntou o que acontecera e a robot começou a explicar uma coisa complicadíssima, que quase parecia a leitura de um calhamaço do primeiro ano de medicina.
“Em linguagem de gente, isso é o quê?”
A médica-robot-loura pareceu surpreendida com a pergunta.
“Estou a dizer-lhe que correu tudo bem”, confessou. E Maddox pressentiu uma ligeira emoção de vexame.
“Aproveito para lhe perguntar", disse Maddox. "Tal como a minha mulher, também comprei um microchip, mas não está a dar resultado. Por exemplo, olho para si e não sinto nada”.
Ela olhou para ele, depois continuou. No mesmo estilo:
“O microchip que retirámos do cérebro da sua esposa era de contrabando e tinha um defeito de fabrico que estimulava em excesso a líbido da paciente. O caso que me conta pode ser inverso e, no mínimo, o senhor terá sintomas de crescente paranóia. A prazo, o resultado é a morte. Ou seja, em linguagem de gente, teremos de proceder a uma imediata intervenção cirúrgica”.
A médica-robot chamou dois enfermeiros. Enormes, com cara de poucos amigos. Veio também a máquina da faxina. Seguraram Maddox com bastante força, obedecendo às ordens da beldade loura. O humano sentiu que havia na expressão das máquinas um ligeiro vexame. E, no ar, havia um leve cheiro a ozono.
“Há aqui algum médico humano?”, ainda perguntou Maddox.
“Não, as nossas equipas são todas mecanizadas”, respondeu a médica.
Maddox viu na beleza loura um sorriso a mais, ou seria da sua crescente paranóia? 
 
 

fim

publicado por Luís Naves às 12:54

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Terça-feira, 6 de Janeiro de 2009

O décimo terceiro dia (primeira parte)

 

 

 

Seis

O mundo continua a cair aos pedaços. Não há mais lojas para assaltar e as hordas atacam agora os trabalhadores que tentam passar para os seus empregos, os velhos que se aventuram até aos postos de racionamento, os poucos carros que ainda circulam nos bairros, até bombeiros e ambulâncias. A polícia já não tenta fazer nada: os agentes ficam impávidos, a ver a turba a escaqueirar tudo o que mexe. Muitos guardas juntaram-se ao saque. O presidente mobilizou o exército, mas há deserções. A loucura atingiu pessoas que eu julgava sensatas: vizinhos do meu prédio barricaram-se, armados, e não deixam ninguém aproximar-se. Ainda tenho televisão, entre os apagões de electricidade: diziam nas notícias que o motim se estendeu aos bairros ricos: não há mais elixir e isso é ainda pior do que não haver dinheiro (espatifaram as máquinas automáticas e incendiaram os bancos); é pior do que a água só correr nos canos durante alguns minutos (encho baldes, tento lavar-me, e pouco mais posso fazer). Um grande relógio soa na cabeça dos que tomavam a droga e que esperam um milagre ou a morte lenta. Este é o meu sexto dia sem elixir; mas sou afortunado, tinha em casa 14 comprimidos; portanto, o motim dura há 20 dias… Restam-me, talvez, cinco ou seis para viver… Já não tenho dinheiro, mesmo que voltem a vender o remédio; as minhas acções não valem nada, é cada um por si. O suicídio colectivo…

 

Sete

Todo o dia e toda a noite, houve tiroteios e correrias. Depois, o silêncio. Muita gente tentou fugir da cidade, mas restavam poucos carros intactos e da janela vi como as pessoas se bateram por eles. Roubaram-se umas às outras, há cadáveres no chão. Os sobreviventes partiram a pé, embora saibam que não têm para onde ir. As dores no meu corpo são insuportáveis e não me consigo mexer. Tenho de conseguir; não pela comida ou água, mas pelo elixir. Se não o tomar, morrerei em quatro ou cinco dias, talvez apenas três. Não sei onde possa encontrá-lo. Tudo isto aconteceu porque havia pessoas que o tomavam e a maioria não tinha dinheiro para isso. E, agora, ninguém tem dinheiro para isso. O mundo está em ruínas e não há nenhum sítio para onde ir.

(continua)

 

publicado por Luís Naves às 18:10

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O décimo terceiro dia (segunda parte)

 

 (...)

Oito

Foi um dia muito difícil, o oitavo consecutivo sem a droga. Acordei com dores em todo o corpo. O meu interior parece arder, como se alguém tivesse despejado ácido puro para dentro de cada fibra.

Apesar das dores, tentei sair de casa: o prédio está devastado pelo interior, mas sinto o rumor dos que ficaram. Não são muitos. Quase toda a gente fugiu para fora da cidade; os que tinham carro ou gasolina; alguns vão talvez sobreviver, sobretudo os mais novos; o que me dá certa esperança. Talvez nem tudo acabe desta forma. Não há água nem electricidade.

Quando saí do meu prédio, a rua estava vazia: havia carcaças de carros incendiados, lixo arrastado pelo vento, corpos abandonados e que ninguém se deu ao trabalho de enterrar. E uma angustiante quietude tomara conta dos edifícios, onde se encolhiam as pessoas assustadas, cuja presença invisível se adivinhava.

Caminhei com prudência, encostado às paredes, tentando fazer o mínimo de ruído. As dores no corpo impediam-me de andar depressa; o frio era cortante, ao fundo havia colunas de fumo negro, incêndios; e o cheiro era de plástico queimado, mas também de podridão e morte.

No centro comercial do bairro, todas as lojas tinham sido pilhadas. Eram carcaças vazias. Não havia sinal de comida ou de remédio, nada, nem vivalma, pareceu-me a princípio. Como se o mundo se tivesse esvaziado e eu fosse o único ser que restava: é que nem se avistavam pássaros ou cães abandonados, como se aquela loucura dos homens assustasse os próprios animais.

Estava atento a todos os perigos, mas acho que tive sorte em não ser atingido pela barra de ferro que zumbiu a centímetros da minha cabeça. O ataque surgiu do nada. Desviei-me no último momento, por instinto, e só vi passar aquela violenta sombra, que se estatelou no chão, com a inércia. O homem parecia uma múmia e estava quase cego, só por um triz não me acertara, mas agora nem sequer conseguia erguer-se. Rastejou um pouco, virou-se para mim, implorou. Estava num estado de remissão mais avançado do que o meu, pelo menos do décimo dia de interrupção. Eu ficaria assim, no máximo dentro de dois ou três dias: com a pele carcomida, sem cabelo, dentes ou unhas, chagas pelo corpo, manchas horríveis e dores insuportáveis.

O homem implorou ajuda. Um comprimido, dê-me um comprimido, disse. O que eu não tinha. O que também procurava. Respondi que não tinha nenhum comprimido comigo. Foi nessa altura que o reconheci: outrora, tinha sido um vizinho simpático e de aspecto saudável. Engenheiro. Parecido comigo: sacrificara tudo para prolongar a sua vida. Agora, a arrastar-se pateticamente no chão, parecia uma tartaruga de pernas para o ar. Não conseguia sequer erguer-se. Pediu-me ajuda. Mas ele quase me atingira com a barra de ferro. Eu teria morrido certamente, se lhe restasse um pouco mais de força.

Pensei em revistar-lhe os bolsos, à procura de alguma coisa que me pudesse ser útil, mas ele tinha a barra de ferro na mão e ainda podia usá-la.

Por isso deixei-o ali, a morrer devagar.

 

Nove

Em casa, não há mais nada para fazer. Resta-me esperar pelo inevitável. Sentei-me e o tempo passou, entre recordações; lá fora, os ruídos; por vezes gritos de morte; correrias, depois silêncios; a escuridão.

Agora penso. E se tivesse escolhido uma vida normal?

Abdiquei da família e do futuro. Prescindi dos luxos. Esta foi a minha única obsessão: viver, e para isso não precisava de ser feliz…

(continua)

publicado por Luís Naves às 18:08

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O décimo terceiro dia (última parte)

 

 (...)

Dez

O remédio não apareceu num só dia, foi aparecendo. No início, era um segredo bem guardado. Dizem que as pessoas que estão a tomar o elixir há mais tempo têm quase 150 anos, todas milionárias: talvez seja boato, mas se for verdade, significa que inventaram os comprimidos no final do século XX, ainda eu não era nascido. O nome do inventor nunca foi divulgado: oficialmente, o remédio foi desenvolvido por cinco equipas separadas, mas já li que essa é uma história fabricada. O segredo manteve-se durante décadas porque a empresa que tinha a patente decidiu comercializá-la apenas para pessoas muito ricas, dispostas a pagar milhões pela fonte da juventude. Os componentes da fórmula secreta são raros (sabe-se que usam grandes quantidades de plantas tropicais difíceis de cultivar); e então a produção começou a ser menor do que a procura; e, de súbito, o desespero, as primeiras pilhagens de farmácias, o início da bola de neve.

Sendo impossível satisfazer toda a gente, foi mais rentável satisfazer apenas a minoria. As pessoas estão prontas a pagar muito dinheiro por aquilo que é raro. Assim, os primeiros a tomar o elixir da juventude teriam talvez 40 anos na altura: um comprimido por dia e a degradação das células era reduzida para metade; tomado todos os dias, durante um ano, era como se a pessoa envelhecesse seis meses; dez anos de remédio e cinco de envelhecimento. Parece bater certo: a fórmula deve ter sido descoberta nos anos 90 do século passado.

Tomo este remédio há 50 anos, envelheci o equivalente a 25. Tinha 40 anos quando comecei: a sorte fizera-me ganhar dinheiro na bolsa, parece que foi há uma eternidade (sou veterano da segunda guerra da Coreia); depois, preferi a prudência, ao gerir a minha pequena fortuna. Nada de mansões ou carros, família ou vícios. Só dava para um. Investi de forma prudente, para nunca perder muito: sobrevivi a várias flutuações e até a duas crises financeiras, mantendo sempre um bom retorno. Sempre tive uma casa modesta, vida frugal. Todo o meu dinheiro vai para comprar aqueles comprimidos: aos 90 anos, pareço ter 65.

Mas o elixir da juventude tem um efeito secundário: é preciso tomar um comprimido diário ou o efeito inverte-se, numa escala mais rápida: a primeira vez sem comprimido equivale a um dia de degradação celular; mas ao segundo dia, perdemos dois de vida; e ao terceiro, quatro; ao sexto, um mês; ao décimo, 16 meses, quase ano e meio; ao décimo terceiro dia, quase dez anos. Nunca ninguém sobreviveu ao décimo terceiro dia de interrupção.

 

Onze

Como chegámos a este ponto? O orgulho é o pior pecado do homem, o que tem consequências mais destrutivas. É o pecado mais inútil também, pois tudo aquilo que fizemos está agora em ruínas. Perdido e esquecido.

 

Doze

Já não tenho mais forças para escrever. Amanhã é o décimo terceiro dia.

publicado por Luís Naves às 17:58

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