Quarta-feira, 11 de Fevereiro de 2009

A Leitura

       (Série de autores convidados)

A voz corre numa toada monótona, as palavras umas atrás das outras, todas seguidas, a dizer de coisas distantes, de susto. Rosa Maria mergulha os olhos no jornal e recita a ladainha que só ela sabe decifrar no emaranhado enigmático dos sinais. É como uma sacerdotisa reverenciada, a oficiar culto, sentada no único banco da varanda que dá para a horta ensolarada. Os outros rodeiam-na, de pé. Chegam-se, na ânsia de ouvir, num silêncio de missa, sem tosses. Os homens desbarretaram-se, por respeito. Escutam, de olhos no chão, a querer decifrar a reza.

“...Os tanques saíram de madrugada, depois do sinal combinado entre os revoltosos, e as tropas do golpe tomaram de assalto os quartéis do regime. Houve disparos e há um número incerto de feridos, mas os militares sublevados levaram a melhor. As ruas estão a ser patrulhadas para assegurar a estabilidade e a cidade está calma. A junta militar que assumiu o poder restaurou os direitos cívicos e o general supremo fala hoje à nação”.

Rosa Maria ergueu a cabeça e olha em redor, mas não vê os rostos ansiosos, à espera de um sinal, de uma palavra dela. Está muito longe dali, da horta cheia de sol, onde os pássaros debicam a terra livremente.

Os outros aguardam em silêncio, enquanto ela se demora ainda, lá longe, na rua dos Mártires, percurso diário a caminho do hospital, na cidade agora em sobressalto. Conhece cada uma das pedras daquela calçada, com as suas marcas impressas de vidas antigas. Caracóis gigantes enrolados sobre si próprios, cornucópias de volutas caprichosas, vestígios de bichos há muito desaparecidos. Agora, quem sabe, estilhaçados sob as lagartas brutas dos tanques. 

– Acabou? – a voz do António Malhadas mais afoito, ou mais nervoso, a quebrar o silêncio. Os outros agitam-se, como num fim de missa. Perdeu-se o recolhimento. Os homens murmuram, desassossegados.

Rosa Maria olha em volta. Vê os estorninhos em voos incertos entre as macieiras, a pequena torre branca da capela a destacar-se sobre os telhados negros. Mas os olhares deles são interrogações. Que tropa revoltada é essa, mais os seus tanques? Os feridos, que é feito deles? E esse general, quem é? Algum malandro que para lá anda a comer à conta, é bom de ver. Todos iguais. Lutas de galos. Não se cheguem para cá.

– Acabou a notícia – confirma Rosa Maria, num gesto de mãos vazias, a mostrar que não tem mais palavras..

– Não diz mais nada. Depois vem a inauguração de um fontanário noutra cidade, com festa, desfile da banda e leitão assado. E o caso de um moço de fretes abalroado por um carro eléctrico. Partiu o farol dianteiro ao eléctrico, mas só fez um galo na cabeça. Querem que leia?

 – Aí valente, testa de boi – o Mário da Aninhas na gozação. Foi a risada geral. – Desses é que já há poucos –. Mais risos a estalar na tarde mansa. Rosa Maria também ri. O grupo esmorece depois, a pouco e pouco. Assoma de novo a inquietação, quase se pode palpar.    

 – Acha que vêm por aí, menina? – Pedro Santa, corpo mirrado de velho, fez a pergunta que andava no ar. Não seria a primeira vez que teriam de fugir da tropa fandanga, caída ali a comer do que havia, sem pedir licença, a desgraçar um pobre. A velha Matilde, que Deus tenha, é que contava, de ouvir contar.

Rosa Maria não sabia se os militares viriam, Vivia na cidade, conhecia-lhe o bulício de gente e carros. No hospital, mudava as ligaduras aos doentes, chegava-lhes um copo de água e os comprimidos, dava as injecções que os médicos prescreviam. Fazia-o com destreza, ninguém reclamava. E também ouvia os queixumes e limpava os corpos sofridos. Mas não sabia nada de golpes militares, ou de política. Só o que lia nos diários, de vez em quando, nos tempos mortos do hospital. De férias na aldeia, em casa da mãe, sabia ainda menos. Só podia ler-lhes em voz alta o jornal, trazido nessa manhã pelo carteiro. 

– A tropa tem mais que fazer. Guardar os quartéis, segurar aquilo. Para que viriam a este fim do mundo? Só se fosse para vos comer as morcelas e a carne das salgadeiras. Disso, eles têm lá muito.

Aquilo era para os animar. Na verdade não tinha a mínima ideia, mas não valia a pena estar a fazer mais histórias.  

Os homens sorriram, mais distendidos, mas também por delicadeza para com a rapariga. Ela tinha-lhes feito o favor, de outra maneira, não saberiam de nada, feitos uns brutos, pensou o Santa. E para afastar de vez o sobressalto, chegou-se à frente.

– A menina, se não fosse pedir demais, podia ler só mais essa, a do testa de boi?

Ela riu-se, fez que sim. E recomeçou a toada, as palavras umas atrás das outras, todas seguidas. Eles escutavam, em silêncio recolhido, de olhos no chão.

 

Filomena Naves

publicado por Luís Naves às 13:44

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