Sábado, 28 de Agosto de 2010

Cena de ciúmes

Uma sombra de cinza pairava sobre aquela parte da cidade, como se houvesse ali uma maldição particular que enchia os corações de escuridão.
Desci da carruagem a sentir nojo pela rua enlameada, a olhar a medo as lúgubres fachadas. O cocheiro largou para o centro, a chicotear os cavalos e fiquei sozinho. Fui tocado ao de leve pelo frio cortante do vento, num arrepio.
Encontrei os polícias numa rua interior do bairro operário. Estavam dentro de um prédio de cinco andares, ruidoso e sobrelotado. Os curiosos indicaram-me o caminho. Julgaram que eu era também polícia e alguns chegaram a tirar os barretes da cabeça. Fui subindo, bastava avançar para o ponto onde houvesse mais gente com ar pasmado. Segui por corredores esconsos e cheguei ao buraco onde estavam os detectives e o médico legista. E os dois corpos das vítimas.
A mulher estava meio despida, inerte, o cabelo louro e comprido a cobrir-lhe a cabeça como um véu. O braço esquerdo subia, elegante, para o planalto da cama e ali jazia, muito iluminado.O amante estava encostado à parede, grotesco, a cara desfeita pelo tiro e os braços abertos, numa incredulidade.
Aproximei-me do detective que conhecia melhor, Braskó, e saudei-o.
“Vocês são piores que as piranhas”, disse Braskó, “cheiram o sangue à distância”.
“Sabes como uma cena de ciúmes atrai sempre a atenção dos leitores. E um crime suburbano vende jornais”.
O detective largou uma sonora gargalhada, que destoava daquele espectáculo. E disse:
“A burguesia não tem emenda, sempre fascinada pelas misérias dos seus operários”.
“Como é que se chamavam as duas vítimas?”, perguntei, a tentar ignorar o comentário dele.
“Ele era sapateiro, um tal Imre Mozgó. Nasceu em 1881, portanto, tinha 29 anos”.
“Mozgó [mexido*]? Brincas?”
“Assim mesmo. Ela era Dora Szábo, 20 anos. Operária. Linda de morrer”.
Estavam a virar o corpo e tinha sido de facto uma mulher lindíssima. Mantinha uma expressão angelical no rosto. Parecia simplesmente adormecida.
Tentei de imediato confirmar a história que se contava:
“O marido surpreendeu-a com o amante e matou os dois a tiro. Um crime de paixão. Julgamento sensacional e sai em liberdade. Já o prenderam?”
“A história não é bem assim”, disse Braskó. “Ela não era casada”.
“Mas o assassino matou por ciúmes?”
“Ciúmes, maldade, sei lá...”
“E prenderam-no?”
Braskó segredou-me onde o poderia encontrar. O suspeito ainda não seguira para a sede da polícia, no centro da cidade. E eu pensei que ali era o fim do mundo: pessoas que não se casavam, que se traíam como animais. O preso teria na mesma a compreensão do público e da justiça.

 

O assassino estava sentado, muito pálido. Parecia alguém que saíra de um sonho mau. Dava dó ver aquele ser esfrangalhado, desatento das perguntas.

Fora fácil convencer o polícia a deixar-me falar dois minutos com János Toth. A história já começara a correr em toda Budapeste, em forma de boatos, e nestes casos havia sempre uma onda de simpatia pelo marido enganado que lavara com sangue a sua honra. Expliquei ao sargento de guarda que um testemunho em primeira mão serviria para tranquilizar a opinião pública. E dei-lhe uma pequena gorjeta, para o convencer. Ainda bem que chegara cedo ao local do crime. Tinha o exclusivo.
Mas quando fiquei em frente a Toth tornou-se de repente mais difícil raciocinar. Pensei em perguntar-lhe primeiro porque matara os dois amantes. Podia ter morto apenas o sapateiro e poupado a mulher. E lembrei-me do que dissera Braskó, ao falar da maldade. Toth tinha um olhar mesquinho.
“Avisei que os matava”, disse Toth, sem que eu fizesse alguma pergunta.
“E como os matou?”
Ele contou toda a cena. Vira-os chegar de mãos dadas. Era noite. Eles subiram para o quarto e ele sentira uma brusca vontade de matar. Esperou um pouco. Subiu também. Arrombou a porta com um pontapé. A porta cedeu de forma mais fácil do que pensara. O sapateiro levantara-se e levara com um tiro na cara. Não se mexeu mais. E ela pediu-lhe misericórdia, mas Toth disparou.
“Actuei num impulso incontrolável”, esclareceu Toth.
“Compreendo”, disse eu. “Lavou a sua honra”.
“A Dora era minha ou de ninguém”.
“Quando a conheceu?”
“Há um ano”.
“Eram casados?”
“Não acredito em igrejas”.
“E viviam juntos?”
“Ela era minha. Avisei o Mozgó para se afastar”.
Foi neste ponto que os polícias me interromperam. Não consegui fazer mais nenhuma pergunta. Chegara o carro celular para levar o preso. Toth ainda sorriu para mim, com ar sinistro, e pensei que o assassino se iria salvar no tribunal. Crime de paixão, impulso incontrolável, um caso de honra. E, apesar de tudo, havia aquele ar angelical da morta, que tornava impossível o relato. Só me ocorreu esta ideia quando já levavam Toth e fiquei tão irritado com a minha incompetência que nem me lembro de quem me levou até à irmã de Dora.

 

Georgina era uma mulher a rondar 30 anos e que engordara precocemente. A casa, enfim, o miserável quarto onde vivia mal dava para tantas crianças. Contei pelo menos quatro filhos. Apesar da pobreza, havia certa dignidade, abalada por uma perda sentida.
Ao ver os olhos congestionados do choro, senti pudor em perguntar àquela mulher porque razão a sua irmã atraiçoara o marido. Enfim, não o marido legal, mas o marido de facto. Fiz uma pergunta redonda, que a fez falar:
“A Dora era uma mulher honesta, senhor jornalista. Era uma mulher alegre, bondosa e trabalhadora. E agora morreu, sem fazer mal a ninguém”.
“Que idade tinha a sua irmã?”
“Tinha só 20 anos”.
“E o que fazia?”
“Trabalhava na fábrica de fiação. É onde trabalha toda a gente do bairro. Uma vida dura, a nossa. Às vezes não há trabalho. Não temos comida para dar às crianças”.
“E a senhora é casada?”, perguntei, porque não vira um homem na casa.
“Sou viúva, senhor. E a minha irmã era o meu amparo. Ajudara-me a tratar dos meus filhos, todos órfãos coitadinhos. E o homem dela, o Mozgás, também me ajudava”.
“Mas, enfim, o homem dela não era o Mozgó, era o Toth, aquele que a matou”.
Georgina ficara paralisada, a olhar para mim. Disse que havia um equívoco. E contou, aos soluços, a sua versão:
“A Dora conheceu o Toth há um ano. Ele prometeu-lhe casamento, disse que tinha dinheiro, mas era um inútil, que vivia do roubo. Os dois viveram juntos algumas semanas, mas ele batia-lhe. Foi pancada de criar bicho, senhor jornalista. Uma noite, a minha irmã apareceu aqui toda amassada, com um braço partido que a impediu de trabalhar durante três meses. Nunca mais voltou para o Toth e ele fazia-nos ameaças. Chegou a ameaçar que nos matava a todos, incluindo os meus filhos, se ela não regressasse. E a Dora manteve-se firme. Um dia, quando ia para a fábrica, ainda estava escuro, a minha irmã deparou com o Toth, que a esperava num descampado. Começou logo a bater-lhe e quase a matava. Mas correram alguns operários e o cobarde fugiu. A polícia nunca nos defendeu. Servimos só para trabalhar e ninguém nos protege. O que será dos meus filhos, agora? O que será de mim?”
“E o Mozgó?”
“Era um bom homem, o Imre. Um bom sapateiro, um rapaz bom”.
“E tornou-se amante da Dora?”
“Amavam-se”.
“E quando se conheceram?”
“Em Abril, há uns seis meses”
“Mas se ela deixara o marido...”
“Qual marido?”
“O assassino, o Toth...”
“Ele não era o marido”.
“Então, como se explicam os ciúmes? O Toth matou para lavar a honra”.
“A Dora e o Imre iam casar, senhor jornalista. O Toth não matou para lavar a honra”.

 

Senti em todo o corpo uma angústia terrível e não sabia libertar-me daquela vaga de emoções confusas. Era uma manhã gelada de caras tristes. Fechei o meu capote e tive um arrependimento súbito por ter trazido o chapéu mais elegante. Andei pela rua enlameada e, sem pensar muito no que fazia, com um asco na minha disposição, dirigi-me à maneira dos sonâmbulos para uma pequena taberna escura. Não me saía da cabeça a imagem, com impressionante precisão, da face angelical da morta. E pensei que a minha própria pele enregelada era um prolongamento do corpo inerte de Dora. Em Budapeste já contavam a história de dois amantes mortos  pelo marido enganado e o mundo parecia-me deslocado do eixo, uma mentira a esvair-se sob a mortalha cinzenta das nuvens que tombavam na terra, tapando os segredos dos homens.
Pedi ao taberneiro uma aguardente bem forte e só depois de a beber de um trago pressenti a presença de um homem ao meu lado, encostado ao balcão da taberna.
“Chamo-me Kolozsvári e assisti à ameaça que o Toth fez a Mozgó”, disse ele, sem preâmbulos.
“Quando é que isso aconteceu?”
“Na semana passada”.
“Conte lá, senhor Kolozsvári”.
“Foi aqui mesmo nesta taberna. O Imre estava tranquilamente a beber uma caneca de cerveja, conversávamos sobre coisas da vida”.
“O senhor era amigo dele?”
“Muito amigo dele. Era um bom homem, o Imre. Valente e generoso”.
“E a ameaça...”
“O Toth entrou e soubemos que ia haver sarilho. Está a ver? O meu amigo ia casar com a Dora e o Toth achava que tinha direitos sobre ela, porque tinham vivido juntos durante duas semanas, no inverno passado. Aquele facínora avisou que o queria longe da rapariga e o Imre respondeu com firmeza que se amavam e iam casar. De repente, o outro tirou do bolso uma navalha de barba e ameaçou-nos. Todos nos levantámos, mas era tarde; ele agarrou o Imre e encostou-o a uma parede – foi ali, senhor, - agarrou o meu amigo com uma força bruta e não pudemos fazer nada. Estávamos tão surpreendidos. Foi tudo demasiado rápido e nem reagimos. De repente, sem aviso, o Toth traçou o Imre na cara. Fez um golpe seco e rápido. Depois, largou-o. O Imre contorceu-se, gritou, ficou de joelhos à mercê dele, mas o outro recuou. Nós avançámos para ele, dispostos a agarrá-lo, mas ameaçou-nos com a navalha. E disse assim: 'Isto é só um aviso. Longos dias têm cem anos. Se voltas a tocar na Dora, mato-te como a um cão'. E saiu a correr, sem nos dar tempo de o perseguir. O Imre sangrava da cara, mas o golpe foi superficial. Ele nem deve ter dito nada à Dora, que era uma mulher muito bonita e morreu por ser a mulher mais bonita que já alguém pôs os olhos em cima. E quando penso nisto, já nem sei se o Toth matou por ter perdido a Dora ou por odiar o Imre. É uma tragédia, senhor, uma tragédia”.

 

Quando regressei ao jornal, Braskó deu-me boleia na sua tipóia. Viemos silenciosos todo o caminho, mas a meio do percurso, o detective perguntou-me o que dissera o assassino. Contei-lhe o relato de Toth e ele riu-se, enquanto acendia o charuto que eu lhe oferecera.
“Um mentiroso, aquele malandro. Já tem a defesa toda organizada, mas não tem hipótese de escapar à forca. Vai dizer ao juiz que a cegueira do ciúme leva o ser humano a fazer o impensável. Já estou a ver o choradinho. Mas ele entrou no quarto sem fazer barulho e surpreendeu os dois amantes a dormir. Primeiro, matou a rapariga com um tiro à queima-roupa...”
“Claro, daí o aspecto sem sofrimento...”
“Naturalmente. O sapateiro era o alvo principal. O malandro queria fazê-lo sofrer. Que ele tivesse tempo de perceber que a amada estava morta. Só depois o abateu. As testemunhas ouviram os tiros com um intervalo de quase cinco minutos. Ninguém fez nada por medo. Podiam ter salvo o sapateiro, ou talvez tivéssemos agora mais algumas vítimas a lamentar”.
“Portanto, aqui não houve ciúmes”.
Braskó fez cintilar o charuto, foi envolvido por um nuvem de fumo, ficara pensativo com a minha pergunta.
“Há ciúmes, talvez. Os ciúmes que os teus leitores querem. Eles tornam a história mais confortável. Dessa forma, não há tanta malvadez, nem monstros que odeiam a felicidade dos outros e que não suportam ver a beleza ou aquilo que é puro. Isto ajuda a explicar o abismo. Os ciúmes explicam as trevas e tudo o que não se pode dizer. Explicam o contexto”.
“É melhor assim. Dora era tão bonita, que o Toth enlouqueceu de ciúmes”.
“Demasiado bela, como um anjo insuportável”, disse Braskó, ao encolher os ombros. 

 

Lajos Kormányos
  

*nota do tradutor
 


 
  

 

publicado por Luís Naves às 15:02

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Sábado, 8 de Agosto de 2009

Fragilidade

 

O empregado de mesa foi brusco comigo, a fingir que não falava línguas ou que não percebera qualquer coisa, o que atraiu a atenção de um homem que se sentava no café, na mesa ao lado da minha: não diria que fosse um obeso, mas tinha peso a mais, cabelo ligeiramente grisalho cortado curto e um olhar muito azul atrás dos óculos de modelo antiquado.

Sorriu para mim, por solidariedade, a propósito do empregado malcriado, como se pedisse desculpa pela parvoíce ou inabilidade do outro. Eu também lhe sorri de volta. Era um incentivo para ele meter conversa comigo, mas por mútua timidez houve um impasse e podíamos ter ficado ambos em silêncio. O desconhecido sabia que eu era estrangeiro, pensei que talvez não falasse línguas, por isso tentei a sorte no meu húngaro precário. Julguei que sabia completar a frase, antes de me ter lançado nela:

“Não ficou satisfeito…”. Eu queria dizer com a gorjeta, mas faltou-me a memória. Fiquei com ar estúpido, a olhar para a mão vazia, na esperança de encontrar as palavras em falta escritas na minha pele.

“Este exemplo não define o meu país”, salvou-me o desconhecido, que falara do empregado num francês rugoso e bárbaro, levemente carregado nas primeiras sílabas das palavras.

“Vocês são terríveis”, respondi, ligeiramente vexado por ele se exprimir em francês. “Quando alguém fala mal o húngaro, respondem noutra língua, para o impedirem de dizer asneiras”.

Ele riu-se:

“Tem razão. É a nossa resistência, suponho”.

Podíamos ter ficado por ali, uma conversa sem história. Mas, para mim, aquele desconhecido tornara-se interessante. Tínhamos escolhido a língua francesa. Perguntei-lhe se era da cidade e ele disse que não, que estava de passagem, que viera à procura de uma pessoa:

“E encontrou-a?”, perguntei, indiscreto.

Deitou-me um olhar estranho, como se parasse para pensar uma infinidade de coisas. Depois, moveu a cabeça, numa negação silenciosa; sorriu com uma tristeza que me impressionou.

“Não a encontrei”, disse ele.

Hesitei. Não podia perguntar-lhe sobre o que adivinhava atrás daquela frase. Uma mulher, talvez, uma paixão antiga. Qualquer coisa de nostálgico, de vagamente inquietante. Fiz um gesto solene para a minha mesa, convidei-o a sentar-se comigo, perguntei se queria acompanhar-me numa bebida. Ele recusou modestamente, com boa educação. Depois, começou a contar a sua história, antes que eu lho pedisse:

“Saí desta cidade há cinco anos, sem olhar para trás. Fui para a capital e reconstruí a minha vida. Na altura, ela disse que iria ter comigo, mas isso nunca aconteceu. Vejo agora que era apenas uma promessa caridosa, em que acreditei de forma ingénua. Entretanto, perdi-lhe o rasto e com o tempo fui percebendo que a minha existência era cada vez mais vazia. Eu sabia que o passado nunca se revive, mas arrisquei tentar reencontrá-la. Ela morava com a mãe num bairro da periferia desta cidade, procurei-as, mas já não moram lá e nenhum dos vizinhos sabe para onde foram; ela trabalhava nos armazéns centrais; veja, ficam atrás daquele edifício; ali, o de cor ocre; mas já não trabalha nos armazéns centrais e ninguém sabe para onde foi. Uma pessoa que a conhecia bem afirmou que talvez tenha regressado à terra dela, mas não tinha nenhuma ideia onde era essa aldeia ou vila. Enfim, procurei-a durante três dias e, ao fim de cada um desses dias, voltava ao quarto de hotel e sentia-me sozinho no mundo. E, ao fim do terceiro dia, algumas horas antes de me sentar aqui, neste mesmo café onde me sento agora, percebi finalmente que nunca a conhecera deveras. Nada sabia sobre aquela mulher, a ponto de compreender subitamente que ela nunca existira, excepto na minha imaginação, quero dizer, que preenche o que me falta na memória. Não tenho qualquer prova da sua existência: uma fotografia, uma lembrança que não seja imprecisa, um rasto, a certeza de que estou a falar com alguém que a conheceu mesmo a ela e não a outra mulher qualquer, apenas parecida. É como esta nossa conversa, que vamos lembrar cada um à sua maneira, a ponto de terem sido duas conversas paralelas e não uma apenas. E assim foi com esta mulher que procurei, que nunca encontrei de facto e portanto nunca perdi; a parte ínfima de uma ilusão na minha vida; uma forma em mudança, que vou esquecendo devagar, como o esquecerei a si talvez, também devagar”.

“Mas um grande amor como o seu é inesquecível por natureza, nunca se perde verdadeiramente…”, afirmei.

“Era demasiado frágil, percebe? Queria tanto acreditar que alterei a própria realidade, criando realidades paralelas. Não será o mundo que nos rodeia isso mesmo? Pontos de vista em contacto, momentos que se limitam a acontecer ao mesmo tempo? Connosco tudo era demasiado intenso, visto numa lupa imensa, que permitia chegar às próprias estrelas. Em cada gesto dela, em cada sopro dela, em cada palavra dela, eu extinguia-me em diferentes fragmentos de mim mesmo”.

“Assim será o amor autêntico. Felizes os que vivem um de verdade”

“Felizes ou infelizes, pouca distância existe entre os dois. Esqueça o que leu nos poetas. A memória é sobretudo um lugar fúnebre e as paixões são cemitérios de sonhos: pairam ali os odores da traição e do desencontro. Ao sair da vida dela julgava estar a protegê-la, mas era uma desistência. Tive medo daquele excesso que me sufocava. Foi uma fuga e uma libertação e encontrá-la agora seria um absurdo”.

O desconhecido ficou algum tempo em silêncio. Depois, ergueu-se lentamente. Disse-me que se chamava Lajos. Eu respondi que me chamava Luís, o que era o mesmo nome. Achei a coincidência engraçada. Ele pediu desculpa pela sua filosofia barata (disse assim) e eu ri-me, cumprimentei-o mais uma vez, esclareci que fora uma conversa encantadora, desejei-lhe sorte e que encontrasse a mulher que procurava.

“E, no final, quem sabe, encontramos sempre alguém”, disse o desconhecido, ao despedir-se, antes de desaparecer na praça cheia de turistas.

Ao vê-lo de costas, a afastar-se, pensei que era tão parecido comigo, ideia afinal um pouco insólita, pois eu não sei como ando, quando sou visto de costas.

publicado por Luís Naves às 19:53

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Quarta-feira, 4 de Fevereiro de 2009

Bilhete de identidade (I)

 

Este é um exercício comum nas redes sociais virtuais. Tentas definir-te em 25 pontos e, depois, envias a autocrítica ou o auto-elogio a 25 dos teus amigos. Ensaiei o exercício, mas temo não ter sido totalmente sincero, como desejava.

 

(Três primeiros pontos):

 

Chamo-me Lájos Kormányos, nasci em Budapeste, em 1961. Escrevo em revistas literárias e num jornal diário. Sobretudo crítica literária, onde sou exigente com a estrutura dos textos, a coerência do enredo e a qualidade poética das imagens. A crítica valeu-me inimizades, mas às vezes entrevisto autores, o que é mais neutro.

Sou também escritor. Tenho uns contos publicados em revistas literárias, alguns deles traduzidos para português por um amigo, que fala mal o húngaro e que (suspeito) reinventa parte dos meus contos. De resto, fora da língua húngara sou desconhecido. Aliás, na língua húngara também sou desconhecido.

É assim que ganho a vida. Gostava de escrever romances, mas não consigo controlar a massa de texto e ligar as diversas linhas da intriga. Tenho deficiências técnicas e na construção da frase. A minha prosa parece-me sempre mole.

(...)

publicado por Luís Naves às 10:21

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Bilhete de identidade (II)

 

 

(...)

(Foram três pontos ou mais do que três? Enfim, pouco importa. Seguem os elementos entre quatro e dez):

 

Os meus pais eram trabalhadores pouco instruídos. A minha mãe, Ana Fischer, que ainda é viva, nasceu em 36, numa aldeia no leste do país, junto à fronteira romena; o meu pai, János Kormányos, era refugiado da Transilvânia. No final da guerra, nos anos mais duros, ambos crianças, os meus pais aperceberam-se da incomum violência que se tornara comum em torno deles.

 A família Kormányos vivia em Makó. O meu pai brincava com os rapazes de uma família de judeus que habitava na casa ao lado. Um dia, chegou a milícia e levaram-nos. O meu pai perguntou o que acontecera e a minha avó, assustada, fê-lo jurar que não voltaria a falar no assunto.

A família Fischer também tinha um segredo, que me é difícil de contar. Quando os soviéticos invadiram a Hungria, entraram pelo leste. Em certas regiões, houve violações em massa e penso que a minha avó materna não escapou. No final de 45, nove meses depois da invasão, nasceu a minha tia Sara, cujos traços asiáticos lhe davam grande exotismo. Mas aquela beleza era um assunto tabu. Não me interpretem mal, só não se falava nisso: os meus avós adoravam especialmente a filha mais nova e eu, que era o sobrinho preferido e único dela, sempre pensei que a minha tia Sara era uma deusa (apaixonei-me por ela em 1970, mais ou menos um ano; eu com nove anos, ela com 24). Para mim, Sara era a mulher mais perfeita do mundo, ainda hoje o meu ideal de beleza.

A minha tia Sara morreu em 75, mas não quero falar nisso.

Os meus pais conheceram-se em Budapeste um ano antes de eu nascer. Eles trabalhavam na mesma fábrica. Sou filho único.

Nos anos 60 e 70 muita gente melhorou de vida, mas só me lembro de ser pobre, embora na altura não me apercebesse disso. Vivíamos numa torre de apartamentos em Kispest, um bairro que ainda hoje me provoca sentimentos contraditórios: subúrbio sujo e sem alma, cheio de vidas apressadas e de gente insatisfeita; e, apesar de tudo, conheço cada recanto daquela arquitectura desolada: os caminhos cheios de lama, as caras fechadas, os pátios vazios e o rumor do interior das casas, entre ervas daninhas que rebentam as lápides e grupos de jovens desempregados encostados à estranha decoração dos grafitos sem nexo.

O meu pai, que era comunista, queria que eu estudasse economia, pois tinha grande admiração pelo poder dos burocratas do ministério do planeamento. Mas fui um desastre nas cadeiras de marxismo-leninismo (não conseguia empinar aquilo) e tive uns problemas na faculdade, pois meti-me com um grupo de oposição. Eles eram mais poetas do que políticos e publicavam os poemas em samizdat, tudo inofensivo e inocente. Não fui preso, nem nada, mas apenas semi-expulso. Como o meu pai era do partido, transferiram-me (escolhi letras) e na altura comecei a trabalhar. Fiz serviço militar e tive dois empregos (numa loja do estado e num hotel, onde houve episódios divertidíssimos) antes de acabar o curso.

Depois, veio a transição e a queda do regime. Para os meus pais foi terrível: a pátria era agora livre, e isso parecia bom; mas a fábrica fechou e foram reformados com pensões incapazes de acompanhar a inflação. Tudo aquilo em que tinham acreditado acabava da pior maneira. O meu pai morreu em 1999, com o mesmo coração amargurado com que costumam morrer os melhores húngaros.

 

(Devia completar até ao ponto dez e já devo ter passado do quinze. Mesmo assim, continuo: estes são os últimos dez pontos da minha autocrítica):

 

Os meus amores sempre acabaram mal. Até hoje tive três relações mais ou menos duradouras, com mulheres que não me compreendiam ou, melhor, que nunca cheguei a compreender.

Uma delas chamava-se Sara e acho que foi o nome que me atraiu nela. Vivemos juntos oito anos. Era uma ruiva magra, com a pele muito branca, seráfica, um pouco distante. E foi essa parecença de esfinge que me excitou (imaginava que debaixo daquela frieza existia um vulcão de emoções).

Era imaginação minha, claro. Aliás, a minha imaginação costuma trair-me. Em tudo vejo conflitos e delírios, ardor e tormento, aventuras. Mas na minha vida não tive senão falsas partidas e pequenas ilusões. Um acumular incessante de banalidades. Viajei pouco, em vez de conhecer o mundo. Tive medo, confesso, medo do que estava além do espaço limitado onde passei os dias, sem reparar que eles passavam mesmo, que se gastavam, que não havia mais nada, depois de estarem consumidos.

 

(último ponto):

 

Não tenho controlo sobre o meu destino e nisso sou igual às minhas personagens. Um dia, tentarei escrever um romance, mas não sei se tenho talento, palavra que um crítico literário nunca deve usar. Gosto da língua húngara, mas acho que podia escrever em qualquer outra língua.

Chamo-me Lájos Kormányos. Sou um pequeno escritor de livros de pequena tiragem.

 

(E agora vou enviar isto para 25 amigos; cada um deles terá de escrever a sua própria história).

 

publicado por Luís Naves às 10:18

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Quarta-feira, 28 de Janeiro de 2009

A sombra do passado

 

O doutor Károly viu de relance o doente, a uma distância considerável, e a cara parecera-lhe familiar. Esperou e depois perguntou à enfermeira o nome do homem que tinha sido internado e lá estava: reconheceu-o imediatamente, Férenc Wilcsek. Envelhecera mais de 40 anos, claro, mas era ele.

Aquilo trouxera-lhe recordações difíceis e não conseguiu tomar uma decisão sobre o que fazer a seguir. Nesse dia, regressou a casa a pensar na sua infância e nem falou no caso com a mulher, embora gostasse de lhe contar tudo o que de importante acontecia no hospital. Féri Wilcsek desaparecera da sua vida, ou antes, da vida da sua mãe, no inverno de 1964 (esforçou a memória para acertar na data). Károly tinha doze anos na altura, chamavam-lhe Zóli, era um menino espigado e louro, rebelde e um bocadinho irrequieto, órfão de pai e ainda por cima pelas piores razões (já ninguém usava a expressão inimigo de classe, mas não se podia confiar no filho de um homem que morrera numa prisão do estado; o anátema perseguira-o até à universidade).

Muitas vezes pensava em como esses anos deviam ter sido difíceis para a sua mãe. Ela nunca gostara de falar nas dificuldades por que passara e de facto, mesmo depois da queda do comunismo, nunca chegou a falar muito no assunto, nem sequer no marido e porque razão ele fora preso. Magda era uma mulher especial, ainda se via nas fotografias como fora bonita, e isso tinha sido confirmado pelo assédio de alguns homens, como Féri Wilcsek, sem dúvida aquele que durara mais tempo e que quase conseguira casar-se com ela. Durante meses tinham vivido juntos. A casa ficava nos subúrbios da cidade, num bairro que ainda parecia uma pequena aldeia. Féri trabalhava numa velha fábrica: saía de casa muito cedo e esperava pelo autocarro na beira da estrada, quer chovesse ou nevasse. Quando regressava já era de noite. Magda trabalhava nos correios, ia em sentido contrário, para o centro da cidade, e o rapaz ficava na escola e, quando acabavam as aulas, vadiava um pouco com os outros alunos das classes trabalhadoras. Tempos difíceis, as ruas eram mal iluminadas, o fumo espesso e ácido das fábricas, as casas tristes, a fuligem dos comboios e as fileiras de árvores iguais a cercas.

A memória regressou em fragmentos. O doutor Károly não conseguia dormir. Ao seu lado, na cama, a mulher adormecera, e era como se ele estivesse sozinho, a olhar fixamente o tecto do quarto. Da janela, vinha a imprecisa luminosidade do luar.

 

De repente, lembrou-se por que razão Wilcsek abandonara a mãe. Emergiu tudo em catadupa. O choro dela nos dias que se seguiram e aquela conversa no escuro.

Recordou: tombara a noite e não havia lua. Passara toda a tarde a jogar à bola e ia para casa, mas viu que Wilcsek falava com um homem de casaco preto e gorro na cabeça. Naquele tempo, as ruas eram escuras. Aproximou-se dos dois homens, sem que o notassem, e ainda ouviu parte da conversa. O amante da sua mãe só dizia que se recusava a fazer qualquer coisa, mas o outro insistia que era necessário. ‘Esta traição não é como dar uma facada no casamento’, dizia o homem do gorro. ‘Não o farei, não o farei’, respondia Wilcsek, ‘amo esta mulher’; e o outro: ‘és doido’.

Foi isto que ouviu e, depois, teve medo e fugiu para casa. O homem do gorro parecia um polícia (só o viu daquela vez), mas quando Féri Wilcsek voltou a casa, tinha bebido e estava irritado. Dias depois, saiu da vida deles e Magda nunca se recompôs daquela perda.

Para Zóli, esta foi uma espécie de aprendizagem. Achara que o amante da mãe fora cobarde em deixar-se assim intimidar pela polícia. A fuga nada tivera de digno. E teve pena da mãe, embora também sentisse uma secreta alegria, pois Wilcsek não era homem para ser o seu padrasto. Nos anos seguintes, muitas vezes, viu como Magda suspirava e como as pessoas eram cruéis, desprezando-a, afastando-se dela, como se tivesse a peste. A mãe envelheceu sozinha e Féri nunca voltou para casa. Depois, mudou de bairro ou de cidade. Perdera-lhe o rasto.  

Enfim, pensou o doutor Károly, havia muitos factos que nunca poderia esclarecer. A sua mãe morrera em 2001 e a morte é demasiado definitiva, por exemplo, em apagar da memória episódios minúsculos e farrapos da vida.

 

Foi por um estranho impulso que no dia seguinte procurou Férenc Wilcsek na enfermaria oncológica. Primeiro, falou com o médico responsável, explicou que aquele doente era um antigo vizinho da sua família, o que equivalia a dizer que as enfermeiras teriam a partir daí atenção especial, um resultado que não desejara. “O velho tem alguns dias de vida, poucos, diria”, explicou o colega.

Entrou na enfermaria e sentou-se junto à cama de Wilcsek. O paciente olhou para ele, um pouco desconfiado, mas sem o reconhecer.

“Chamo-me Zóltan Károly”.

Wilcsek pareceu intrigado com aquela distracção, pensou um pouco e algo se iluminou na sua memória. Lembrava-se de tudo. Sorriu, quis mover-se.

“Então és o endiabrado Zóli, o que foi para a escola de medicina, o rapaz da Magda. Cresceste bem”.

O doutor Károly fez que sim com a cabeça e esperou que o velho moribundo dissesse alguma coisa. Mas Féri Wilcsek limitou-se a fazer perguntas sobre o trabalho do médico e Károly explicou que chefiava um departamento no hospital, que era sócio numa clínica privada.

“Deves ter dinheiro a rodos. Eu sempre achei que eras um rapazola cheio de genica. Gostava de ti à brava. Tu, claro, odiavas-me, e eu teria feito exactamente a mesma coisa na tua situação”, piscou o olho, sorriu com malícia: “Afinal, eu andava a dormir com a tua mãe”.

O médico corou muito; ficara chocado com aquela familiaridade; mas sobretudo perturbado pela sua própria reacção de surpresa.

O velho tentou rir, mas tinha os pulmões desfeitos e isso provocou-lhe um brutal ataque de tosse. Quando se recompôs, disse:

“Eras um diabinho, Zóli. Amámos muito a tua mãe, ambos, muitíssimo. Como eu amei aquela mulher…”, encostara-se nas almofadas, tentava respirar, os olhos fixos no tecto, repletos de lágrimas de dor.

Wilcsek não podia falar mais e o doutor Károly prometeu voltar no dia seguinte, para seguir a evolução do tratamento.

 

O que fez. No dia seguinte falaram mais tempo e com mais calma. O velho estava preocupado com a morte e não queria sofrer demasiado. Foi uma conversa quase agradável, mas era custosa para o doente, que tinha dificuldade em respirar.

Mas também Karoly tinha muita coisa atravessada na garganta e não resistiu. Antes de se despedir, lembrou-se daquilo que Magda sofrera:

“Férenc, você não devia ter abandonado a minha mãe daquela maneira. Ouvi por acaso a sua conversa com um polícia, na semana em que se foi embora. Um homem de casaco e de gorro. Porque é que não o mandou passear? Porque é que teve medo dele? A nossa vida teria sido tão diferente…”

Wilcsek pareceu perplexo e pediu ao médico que repetisse tudo, que explicasse bem o que ouvira naquela noite. Houve uma pausa em que se reclinou nas almofadas, para meditar naquelas sombras do passado. E, quando falou, fez um esforço doloroso, a medir cada palavra:

“Sim, tive medo, quero que me perdoes. E, agora, deixa-me morrer em paz”.

Károly ficara assustado com o que fizera, a insistência fora dolorosa para o paciente. Envergonhado, o médico saiu da enfermaria, prometendo regressar no dia seguinte.

 

Wilcsek morreu nessa noite. Na confusão terminal, ainda balbuciou “tudo ao contrário”, e uma enfermeira perguntou “tudo ao contrário, o quê?”, mas Féri Wilcsek tomou de novo as rédeas da sua cabeça enlouquecida, escondendo para sempre aquilo que o doutor Karoly jamais deveria adivinhar, que a sua mãe, Magda, tinha sido informadora da polícia (enfim, sem alternativa, era preciso sobreviver), e que ele, Féri Wilcsek, o soubera nessa mesma noite distante e fria, por um amigo de casaco e gorro que o fora avisar. O rapaz percebera tudo ao contrário. Melhor assim.  

publicado por Luís Naves às 10:01

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Quarta-feira, 21 de Janeiro de 2009

Atrás do nevoeiro

 

András esquecera-se de telefonar e, logo que ligou e ouviu a voz de Eszter, percebeu que havia tempestade: a rapariga não escondia o ressentimento, podia ouvir-se no tom em que pronunciava as palavras:

“Estive aqui mais de meia hora, desprezada, à espera do teu telefonema”, disse Eszter.

Ele imaginou-a sentada à espera, inclinada como a mulher da Pietà de Michelangelo, mas com o Cristo substituído por um telemóvel a afogar-se nas pregas da túnica. Tentou desfazer o nó, inventou uma desculpa esfarrapada, mas soou a falso. Ela percebera o truque e não alterou a tonalidade agreste e chicoteada na voz. Eszter continuou meio lacrimejante.

András ainda pensou em brincar com aquela crispação exagerada, mas também lhe subia a irritação à cabeça e sentia o sangue a ferver. Apesar de tudo, resistiu à ideia de ser mais brusco. Não lhe apetecia conhecer a mãe da rapariga, mas não queria provocar uma crise por causa disso.

“Só agora é que acabei o relatório. Vamos a tua casa noutro dia”.

Eszter voltou à carga:

“Eu não te devia falar durante dez anos”, insistiu, infantil e mimada.

Andras percebeu a abertura:

“Seria injustiça”, disse. “O killer de Debrecen foi só condenado a 12 anos”.

Ela finalmente riu-se. Toda a gente seguira o caso do assassino que matara quatro membros de um bando ligado à máfia albanesa.

Ao ouvir o riso do outro lado, András cedeu. Combinaram um encontro na praça Moscovo, à saída do metro. Iria conhecer a mãe de Eszter.

 

Todo o caminho, parecia um sonâmbulo, a pensar naquilo: que diabo Eszter via nele? Podia ser o estatuto, o facto de ele ter dinheiro, mas parecia-lhe fraco motivo: a ascensão social não era motivação forte para os jovens que conhecia e se o seu emprego parecia bem pago, o facto é que nem sequer era rico, sobretudo porque tinha de pagar a pensão dos filhos do primeiro casamento. A fuga à monotonia? Talvez ele lhe proporcionasse o que os rapazes da geração dela não lhe podiam dar. Segurança e alargar de horizontes. Mas podia também ser um mero troféu para ela mostrar às amigas. Ou, mais prosaicamente, objecto de manipulação, seduzido por um choro bem calculado, a pequena súplica, o minúsculo gesto, a cedência que a tornava credora, o suspiro com tristeza feroz. 

 

À saída do metro, surpreendeu-se com a luminosidade, pois caíra um nevoeiro pesado. A orla de edifícios, ao fundo, nem se avistava. E das nuvens saíam os eléctricos, como se fossem comboios fantasmas, nos seus carris, e o farol da frente o gigantesco olho dos monstros ciclopes.

 Eszter apareceu-lhe de súbito, emergindo do meio da multidão que dispersava, ser vagamente etéreo a sair de um oceano oculto. Trazia o cachecol enrolado ao pescoço, um casaco espesso cuja cor se esbatia na cinza absurda, o gorro a esconder-lhe o cabelo. Segurou-se a András; ficou com o braço enroscado no seu braço, que era um gesto que sempre o incomodara. E ficaram os dois na plataforma, à espera do autocarro que subia para Buda, silenciosos e sozinhos, como se estivessem numa ilha, o rumor do mundo a conversar aquilo que não conseguiam dizer um ao outro.

 

A mulher que lhes abriu a porta tinha 45 anos, mas parecia mais jovem. Olhou para András com uma expressão de espanto. Empalidecera. Ele surpreendeu-se com a reacção, pois pelo que lhe contara Eszter pensava que já a conhecia: Dorothea (Dori) era médica, divorciada e vivia com a filha única num apartamento elegante de Buda, numa rua calma, que subia abruptamente na direcção da colina. Dori, que imaginara mais velha, era alta e magra, tinha o nariz algo rude, de camponesa, mas certa elegância sofisticada na maneira de falar e nos gestos contidos.

Depois daquela primeira reacção de surpresa, a mãe não fez mais cerimónia, como não teria feito com um namorado da filha que tivesse vinte anos. Trouxe András para a cozinha e deixou que Eszter falasse de coisas sem importância, fingindo não perceber a atrapalhação da rapariga. András percebeu que Dori o observava, mas o seu era um olhar de uma melancolia inexplicável. Não conseguia esconder a desilusão (ou seria perplexidade, medo?) por o namorado ter o dobro da idade da filha.

Houve uma agitação de preparativos; Eszter foi para a sala arrumar a mesa, a mãe ainda completava a comida.

“Estava à espera de um homem mais novo?” perguntou Andras.

Ela não respondeu.

“A sua filha não lhe explicou…”, disse András.

Ela fez que sim com a cabeça, mas não disse mais nada. Eszter reaparecera, parecia aflita, exagerava na alegria, falava e falava, nervosamente, e não se calava com perguntas sobre copos e pratos e se devia levar o pão para a mesa e que vinho havia para abrir. András percebeu então que nem sequer levara uma garrafa de vinho. Teve a sensação de quem se afunda num momento embaraçoso; o que dissesse só poderia tornar ainda mais estranha a situação; e nada dizer era a confissão da indiferença.

Falaram sobre banalidades. Sentaram-se, estavam os três à mesa, não se calavam e não diziam nada de concreto, até que ficaram os três silenciosos, como se houvesse barulho a estorvar a conversa, uma discussão no prédio ao lado, e tivessem parado de falar para poderem compreender as palavras ausentes.

András sentiu-se no interior do inferno, num casulo de silêncio, sem compreender a falsa tranquilidade que os rodeava, mas absorvendo toda a culpa do momento.

E, de repente, Eszter deu um salto que fez cair a cadeira e saiu da mesa, correndo dali para fora. Correu para o quarto dela e bateu com a porta.

András tentou erguer-se, hesitando embora.

“Deixe-a chorar”, pediu Dori.

“Tenho a sua idade e esta relação pode parecer estranha, um homem de 45 anos, uma jovem de 20, mas asseguro-lhe que gosto da sua filha e que as minhas intenções são honestas”, disse András.

“Sei disso”. Dori sorria-lhe, distante. “A culpa não é sua. Mas quando o vi a entrar por aquela porta, pareceu-me que estava a olhar para o meu ex-marido, para o pai de Eszter. Vocês os dois não são exactamente iguais, mas o András é o homem mais parecido com o meu ex-marido que jamais encontrei”.

Ficaram ambos calados, durante algum tempo. Depois, Dori disse:

“Não sei a razão dela fazer isto. Para me punir, talvez. Tente não ficar muito ferido”.

András levantou-se da mesa, pegou no casaco.

Despediram-se com um aperto de mão.

“Vou tentar consolar a minha filha. Adeus”, disse Dori.

Fechou a porta. András desceu as escadas. O nevoeiro conquistara toda a rua e toda a colina, como se fosse a respiração de mil almas inquietas.

  

 

publicado por Luís Naves às 09:54

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Quinta-feira, 8 de Janeiro de 2009

Um caso passageiro (primeira parte)

 

 

A memória que mantinha dela transformara-se, a ponto de a princípio me parecer outra pessoa, uma estranha. Foi ela a reconhecer-me na rua. Chamou por mim, Lajos, quase gritou e olhei melhor na sua direcção, primeiro não a reconhecendo, embora fazendo os gestos apropriados de não me comprometer, de não agir como se fosse uma desconhecida.

E, de súbito, tudo se tornou claro. Teresa (chamemos-lhe assim) aproximara-se, mas suavizara o impulso de me encontrar, talvez desiludida com a minha reacção pouco entusiasta. Tentei disfarçar o embaraço, parecer alegre. E o que me saía era um pouco engasgado, apesar dela manter aquele mesmo sorriso arrebatador, sem sombra de ressentimento.

“Encontrar-te aqui é mesmo uma surpresa”, disse ela. E abraçou-me, espontaneamente.

Tinha engordado, naqueles doze anos.

 

Era uma tarde de Outono, a rua fria e eu tinha um compromisso e estava atrasado. Por nós, passavam pessoas também apressadas.

Queria perguntar-lhe o que lhe acontecera, porque se fora embora, o que fazia ali em Budapeste. Mas só consegui falar da mim, e mais uma vez ela parecia decepcionada. Quase o confessou:

“Sempre imaginei que ias ser escritor”, confessou Teresa, quando lhe contei, com pormenores enfadonhos, o que escrevia como crítico literário.

Corei, mudei de assunto. Foi a minha oportunidade para lhe perguntar o que fazia na vida, quando o que verdadeiramente queria era perguntar-lhe o que acontecera, porque razão se fora embora. Mas, em vez de responder à pergunta que eu lhe fizera, ela respondeu à pergunta que eu queria ter feito e que me estrangulava a garganta:

“Ah, meu querido. Sabes como é, as fronteiras estavam abertas e eu não aguentava mais a Hungria. Fui para Paris, casei com um francês”.

(continua)

publicado por Luís Naves às 12:55

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Um caso passageiro (última parte)

 

(…)

Um amigo dizia-me que nunca tinha tido uma namorada feia. E, quando alcançava o efeito pretendido, acrescentava, solene: “Cada uma das minhas namoradas parecia-me a mulher mais linda do mundo”.

Quando ele dizia isto, eu lembrava-me da Teresa. Também me lembrava de um filme em que uma personagem secundária afirmava ter sempre namoradas feias, pois assim não corria o risco de uma desilusão amorosa. Tudo muito divertido, mas falso.

Teresa tinha uma voz irritante e a cara desagradável à primeira vista, um pouco assimétrica e demasiado angular e magra. Embora fosse perfeita de corpo, podia dizer-se que era uma mulher feia. Mas tudo dependia do ponto de vista, percebem? E, no entanto, ela sofria, como aliás todos nós sofremos com os nossos defeitos demasiado evidentes e em relação aos quais nada podemos fazer, mesmo aqueles defeitos que não temos e julgamos tanto possuir, que eles passam a fazer parte da nossa personalidade… Um bicho estranho e inseguro, o ser humano…

 

Foi num Outono que ela se apaixonou por mim. Eu gostava dela, juro que gostava, mas sabia ao mesmo tempo que aquilo não poderia durar eternamente. Para mim, era um caso passageiro, mas também os tempos prestavam-se a certa impaciência, pois sabíamos que o regime ia cair e agíamos como se o amanhã não existisse da mesma forma que o hoje. Aliás, Teresa era uma mulher excitante, embora não o imaginasse. Desajeitada na cama, mas de corpo perfeito, já o disse, e o sorriso dela encantava-me e eu gostava da conversa e da companhia, e tinha uma ternura especial. Toda a gente a achava simpática. Isto foi assim, mas com um pequeno detalhe, que afinal talvez não fosse um pequeno detalhe. Sinto-me embaraçado ao escrever isto, mas eu tinha uma reputação a defender, não podia assumir um namoro permanente com Teresa. Percebem? Ela era demasiado feia para ser a minha namorada, a única, quero dizer, a mais importante, enfim, a oficial.

 

Sinto vergonha ao confessar isto. Não entrarei em pormenores: foi na altura em que caiu o muro de Berlim, nesse mesmo inverno, num dia qualquer perto do natal. Fizemos amor nessa tarde e ela estava num estado de felicidade como nunca a vi.

É estranho: será possível que aquele fosse o momento mais feliz da vida dela?

À noite, fomos para uma cervejaria onde se reuniam os amigos, um grupo meio político, meio intelectual, que sentia a necessidade de querer mudar o mundo. Era a conjuntura certa para o fazer. Sei que bebi um pouco. Estava ao lado de Sara, uma colega lindíssima que, mais tarde, seria a minha primeira mulher (de quem me divorciei pouco depois). Acho que ficámos os dois muito afectuosos nessa noite e eu às vezes olhava para Teresa, sentada em frente a nós, sem nada para dizer, apenas aquela felicidade toda a diluir-se devagar, até ser uma pequena sombra.

 

Alguns dias depois, Teresa partiu para o ocidente. Eu entretanto apaixonara-me por Sara e não resisti, não protestei, não tentei dissuadir Teresa. Pelo contrário, até me ofereci para a acompanhar à estação de Nyugati. O que ela recusou. Nunca mais a vi. Por vezes, tinha notícias, que estava em França, que estava bem. E foi tudo.

 

E agora, doze anos depois, ali estávamos, a tentar compreender o que nos acontecera. A rua fria, o trânsito caótico; muita gente passava por nós, na azáfama das compras.

“Fico feliz por saber que está tudo bem contigo”, disse eu, “tenho que ir, um compromisso…”

Uma menina adolescente aproximou-se, a dizer qualquer coisa em francês.

“A minha filha…”, explicou Teresa.

“Que bonita”, elogiei. (Era parecida com a mãe). “E que idade tem?”

“Quase doze”.

“Então, boa sorte para ti”, acenei.

E Teresa respondeu: “Boa sorte”.

E eu desci todo o boulevard Erzsebet a repetir “quase doze, quase doze, quase doze”.

 

(fim)

 

publicado por Luís Naves às 12:52

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