O doutor Károly viu de relance o doente, a uma distância considerável, e a cara parecera-lhe familiar. Esperou e depois perguntou à enfermeira o nome do homem que tinha sido internado e lá estava: reconheceu-o imediatamente, Férenc Wilcsek. Envelhecera mais de 40 anos, claro, mas era ele.
Aquilo trouxera-lhe recordações difíceis e não conseguiu tomar uma decisão sobre o que fazer a seguir. Nesse dia, regressou a casa a pensar na sua infância e nem falou no caso com a mulher, embora gostasse de lhe contar tudo o que de importante acontecia no hospital. Féri Wilcsek desaparecera da sua vida, ou antes, da vida da sua mãe, no inverno de 1964 (esforçou a memória para acertar na data). Károly tinha doze anos na altura, chamavam-lhe Zóli, era um menino espigado e louro, rebelde e um bocadinho irrequieto, órfão de pai e ainda por cima pelas piores razões (já ninguém usava a expressão inimigo de classe, mas não se podia confiar no filho de um homem que morrera numa prisão do estado; o anátema perseguira-o até à universidade).
Muitas vezes pensava em como esses anos deviam ter sido difíceis para a sua mãe. Ela nunca gostara de falar nas dificuldades por que passara e de facto, mesmo depois da queda do comunismo, nunca chegou a falar muito no assunto, nem sequer no marido e porque razão ele fora preso. Magda era uma mulher especial, ainda se via nas fotografias como fora bonita, e isso tinha sido confirmado pelo assédio de alguns homens, como Féri Wilcsek, sem dúvida aquele que durara mais tempo e que quase conseguira casar-se com ela. Durante meses tinham vivido juntos. A casa ficava nos subúrbios da cidade, num bairro que ainda parecia uma pequena aldeia. Féri trabalhava numa velha fábrica: saía de casa muito cedo e esperava pelo autocarro na beira da estrada, quer chovesse ou nevasse. Quando regressava já era de noite. Magda trabalhava nos correios, ia em sentido contrário, para o centro da cidade, e o rapaz ficava na escola e, quando acabavam as aulas, vadiava um pouco com os outros alunos das classes trabalhadoras. Tempos difíceis, as ruas eram mal iluminadas, o fumo espesso e ácido das fábricas, as casas tristes, a fuligem dos comboios e as fileiras de árvores iguais a cercas.
A memória regressou em fragmentos. O doutor Károly não conseguia dormir. Ao seu lado, na cama, a mulher adormecera, e era como se ele estivesse sozinho, a olhar fixamente o tecto do quarto. Da janela, vinha a imprecisa luminosidade do luar.
De repente, lembrou-se por que razão Wilcsek abandonara a mãe. Emergiu tudo em catadupa. O choro dela nos dias que se seguiram e aquela conversa no escuro.
Recordou: tombara a noite e não havia lua. Passara toda a tarde a jogar à bola e ia para casa, mas viu que Wilcsek falava com um homem de casaco preto e gorro na cabeça. Naquele tempo, as ruas eram escuras. Aproximou-se dos dois homens, sem que o notassem, e ainda ouviu parte da conversa. O amante da sua mãe só dizia que se recusava a fazer qualquer coisa, mas o outro insistia que era necessário. ‘Esta traição não é como dar uma facada no casamento’, dizia o homem do gorro. ‘Não o farei, não o farei’, respondia Wilcsek, ‘amo esta mulher’; e o outro: ‘és doido’.
Foi isto que ouviu e, depois, teve medo e fugiu para casa. O homem do gorro parecia um polícia (só o viu daquela vez), mas quando Féri Wilcsek voltou a casa, tinha bebido e estava irritado. Dias depois, saiu da vida deles e Magda nunca se recompôs daquela perda.
Para Zóli, esta foi uma espécie de aprendizagem. Achara que o amante da mãe fora cobarde em deixar-se assim intimidar pela polícia. A fuga nada tivera de digno. E teve pena da mãe, embora também sentisse uma secreta alegria, pois Wilcsek não era homem para ser o seu padrasto. Nos anos seguintes, muitas vezes, viu como Magda suspirava e como as pessoas eram cruéis, desprezando-a, afastando-se dela, como se tivesse a peste. A mãe envelheceu sozinha e Féri nunca voltou para casa. Depois, mudou de bairro ou de cidade. Perdera-lhe o rasto.
Enfim, pensou o doutor Károly, havia muitos factos que nunca poderia esclarecer. A sua mãe morrera em 2001 e a morte é demasiado definitiva, por exemplo, em apagar da memória episódios minúsculos e farrapos da vida.
Foi por um estranho impulso que no dia seguinte procurou Férenc Wilcsek na enfermaria oncológica. Primeiro, falou com o médico responsável, explicou que aquele doente era um antigo vizinho da sua família, o que equivalia a dizer que as enfermeiras teriam a partir daí atenção especial, um resultado que não desejara. “O velho tem alguns dias de vida, poucos, diria”, explicou o colega.
Entrou na enfermaria e sentou-se junto à cama de Wilcsek. O paciente olhou para ele, um pouco desconfiado, mas sem o reconhecer.
“Chamo-me Zóltan Károly”.
Wilcsek pareceu intrigado com aquela distracção, pensou um pouco e algo se iluminou na sua memória. Lembrava-se de tudo. Sorriu, quis mover-se.
“Então és o endiabrado Zóli, o que foi para a escola de medicina, o rapaz da Magda. Cresceste bem”.
O doutor Károly fez que sim com a cabeça e esperou que o velho moribundo dissesse alguma coisa. Mas Féri Wilcsek limitou-se a fazer perguntas sobre o trabalho do médico e Károly explicou que chefiava um departamento no hospital, que era sócio numa clínica privada.
“Deves ter dinheiro a rodos. Eu sempre achei que eras um rapazola cheio de genica. Gostava de ti à brava. Tu, claro, odiavas-me, e eu teria feito exactamente a mesma coisa na tua situação”, piscou o olho, sorriu com malícia: “Afinal, eu andava a dormir com a tua mãe”.
O médico corou muito; ficara chocado com aquela familiaridade; mas sobretudo perturbado pela sua própria reacção de surpresa.
O velho tentou rir, mas tinha os pulmões desfeitos e isso provocou-lhe um brutal ataque de tosse. Quando se recompôs, disse:
“Eras um diabinho, Zóli. Amámos muito a tua mãe, ambos, muitíssimo. Como eu amei aquela mulher…”, encostara-se nas almofadas, tentava respirar, os olhos fixos no tecto, repletos de lágrimas de dor.
Wilcsek não podia falar mais e o doutor Károly prometeu voltar no dia seguinte, para seguir a evolução do tratamento.
O que fez. No dia seguinte falaram mais tempo e com mais calma. O velho estava preocupado com a morte e não queria sofrer demasiado. Foi uma conversa quase agradável, mas era custosa para o doente, que tinha dificuldade em respirar.
Mas também Karoly tinha muita coisa atravessada na garganta e não resistiu. Antes de se despedir, lembrou-se daquilo que Magda sofrera:
“Férenc, você não devia ter abandonado a minha mãe daquela maneira. Ouvi por acaso a sua conversa com um polícia, na semana em que se foi embora. Um homem de casaco e de gorro. Porque é que não o mandou passear? Porque é que teve medo dele? A nossa vida teria sido tão diferente…”
Wilcsek pareceu perplexo e pediu ao médico que repetisse tudo, que explicasse bem o que ouvira naquela noite. Houve uma pausa em que se reclinou nas almofadas, para meditar naquelas sombras do passado. E, quando falou, fez um esforço doloroso, a medir cada palavra:
“Sim, tive medo, quero que me perdoes. E, agora, deixa-me morrer em paz”.
Károly ficara assustado com o que fizera, a insistência fora dolorosa para o paciente. Envergonhado, o médico saiu da enfermaria, prometendo regressar no dia seguinte.
Wilcsek morreu nessa noite. Na confusão terminal, ainda balbuciou “tudo ao contrário”, e uma enfermeira perguntou “tudo ao contrário, o quê?”, mas Féri Wilcsek tomou de novo as rédeas da sua cabeça enlouquecida, escondendo para sempre aquilo que o doutor Karoly jamais deveria adivinhar, que a sua mãe, Magda, tinha sido informadora da polícia (enfim, sem alternativa, era preciso sobreviver), e que ele, Féri Wilcsek, o soubera nessa mesma noite distante e fria, por um amigo de casaco e gorro que o fora avisar. O rapaz percebera tudo ao contrário. Melhor assim.
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