Segunda-feira, 4 de Janeiro de 2010

Parabéns a nós

Eis-me acordado dentro de ti.

Num soneto de Rilke,
«entre os ínfimos rumores no capim
e o sabor da hortelã».
Ao longe, sobre a falésia e as mais altas ondas
volteiam as aves, luminosas como purpurinas.

Por que afloraram esses dedos os meus lábios,
na terna certeza que só partilham os amantes?
Assim regressámos, sem receio ou cuidado,
e nem tempo tive para guardar o corpo
em qualquer recanto onde pudesse menti-lo.

Agora regresso ao sono, a outras memórias acres,
preciosas, como trufas selvagens sob o chão.

 

Publicado em Janeiro de 2007 no blogue Prazeres Minúsculos e também neste livrinho aqui.

publicado por João Villalobos às 15:02

link do post | comentar | ver comentários (2) | favorito

Passeio com Átila

 

Da obscura bruma, cinzenta e fria, saiu aquele par de silhuetas. O rapaz era alto e magro, vinha agasalhado com um cachecol velho que destoava do sobretudo. Pela trela, trazia o cão rafeiro, com costela de pastor-alemão. Desceram devagar a rampa e o homem escolheu um banco de jardim, onde se sentou, apesar da forte humidade. Depois, largou o cão da trela e disse, em voz alta, como se conversasse com ele:
“Podes ir, Átila, mas não te afastes”, e admoestava o rafeiro, com o dedo espetado.
A princípio, o animal largou por ali fora, deu três pulos no relvado, cheirou algumas árvores, depois voltou para junto do rapaz, que meditava, a observar o espaço confinado no nevoeiro, as copas de arvoredo no fim do descampado do jardim, as folhas amareladas das árvores mais próximas, a luz que tentava romper a barreira das nuvens.
O cão ficara em frente ao rapaz, sentado sobre as patas traseiras, à espera, a observar o que faria o humano:
“Queres saber como é papar a velhota...”, disse o homem, para puxar conversa.
O cão moveu a cabeça para o lado; talvez para escutar melhor, talvez para tentar compreender a ordem dos sons que o humano fizera.
 “Pois, meu amigo, isso tem os seus problemas”.
O focinho do cão avançara ligeiramente, como que numa interrogação.
“Papar a velhota, digo...”, esclareceu o rapaz.
O cão abriu a boca, descontraíra, tinha a língua de fora...
“Tu deves achar esquisito. Apareci em tua casa, assim, sem aviso, tu percebeste logo ao que eu vinha... Mas não podes compreender porque fiquei com a tua dona...”
O cão ficara ainda mais atento, o olhar interrogador, insatisfeito...
“Ela controla tudo, sabes”, continuou o jovem. “Divorciada, sem filhos, muito dinheiro. E já chegou à idade em que as mulheres se estão nas tintas para as aparências, podem namorar com um tipo como eu, que sou solteiro desempregado, ainda por cima ambicioso. Olha para este magnífico sobretudo”, e mostrou a qualidade do tecido ao canino, que cheirou o casaco. “Boa matéria, foi ela que me comprou, belo presente...”
O homem recostou-se melhor no banco do jardim:
“Achas mal que receba presentes? Tu também dependes dela...”
O cão de novo tinha a língua de fora, como se concordasse...
“Gostei de a conhecer” disse o rapaz, recostando-se melhor no banco de jardim, perna traçada, gestos no ar. “Um dia, claro, vou-me embora... Ela vai chorar umas semanas e depois procura outro matulão como eu. Ou talvez nem chore. Aponta o dedo e diz que a porta é serventia da casa. Temos vinte anos de diferença e ambos sabemos que isto não é para casar. O ideal seria ela arranjar-me um emprego. Até esse dia, dá-me presentes”. Deixou o olhar no cão, mudou o semblante: “Não achas bem?"
Agora, fizera uma pergunta. O tom de voz mudara, tornara-se áspero. O cão apercebeu-se da transformação e olhou para o rapaz, à procura de pistas para compreender o motivo da transição. Depois, o canino distraiu-se, olhou para o lado e rosnou, na direcção do vazio. Houve uma pausa. Em vez do silêncio, surgia um rumor de passos. Do nevoeiro surgiram dois vultos; eram dois homens jovens, que também desciam o caminho asfaltado, no meio do parque público. Vinham a conversar. Aproximaram-se. Pararam junto ao rapaz do sobretudo. Dois skinheads.
Tinham aspecto ameaçador e rufião. Casacos de cabedal, correntes metálicas e tatuagens. Pararam em frente ao banco de jardim.
“É feroz, o rafeiro?”, perguntou o skin mais alto, apontando para o cão.
“Chama-se Átila, portanto, deve ser mau como as cobras”, respondeu o rapaz.
O segundo skin acocorara-se ao lado do animal. Começou a fazer-lhe festas no pescoço e na nuca.
“Parece manso”, disse.
Ficaram os quatro ali calados. Então, o segundo skin foi correr com Átila no relvado; disse que ia testar a velocidade do animal. O outro, o mais alto, que parecia ser o chefe, sentou-se ao lado do rapaz do sobretudo:
“Tu não trabalhavas naquela fábrica que fechou?”, perguntou o skin.
O rapaz fez um gesto, a dizer que sim.
“Eu também. Não te lembras de mim? Trabalhava na secção de polimento. Mas, na altura, usava cabelo comprido...”
“Ah, sim! Lembro-me... Pena a fábrica ter fechado... E, depois, arranjaste emprego?”
“Não! Quem é que hoje arranja emprego? Ando pra qui...Tu, é que tás a subir na vida, casaquinho à maneira...”
“Nem por isso...Tenho uma velhota por conta... É dona de uma escola privada e tem carro e narta”.
“Dá-te umas lições, a velha?”
“Nem por isso...”
“O cão é teu?”
“É dela. Eu só o vim passear.”
“É giro, o cão, e tem um nome porreiro!”
“A minha gaja disse uma vez que era o nome de um guerreiro que andou a espatifar o mundo e a quem chamavam o flagelo de Deus”.
“É sabichona, a tua gaja?”
“Pois, se tem uma escola...”
Átila e o outro skin tinham regressado. O cão arfava de contentamento, afeiçoara-se ao desconhecido e cheirava-lhe as calças e as botas.
“Parece que vai começar a falar, o sacana”, disse o skin, a apontar para o rafeiro.
Depois de dizer aquilo, o chefe levantou-se, espreguiçou-se:
“Tou cá a pensar nesse tal guerreiro”, disse ele, numa risada. “Se calhar o tipo tinha dignidade, porque já nessa altura o mundo precisava de espatifação”.
Dito isto, os skins foram-se embora, mas só se despediram do animal, com grandes festas no pescoço, no dorso e amigáveis palmadas na nuca do rafeiro.
Regressara o silêncio. O parque mergulhara numa espécie de intervalo, com a cidade imperceptível atrás da névoa densa e os pensamentos a fluírem sem nexo.
“E aqui estamos nós os dois sem termos para onde ir”, disse o rapaz, a falar sozinho.
E o cão gemeu um pouco, sempre a observar o humano; inclinou a cabeça, como se tivesse pena dele; abriu muito os olhos, como se quisesse dar-lhe força para tomar uma decisão.
“E tu aqui a perceberes tudo o que nós dizíamos...”, murmurou o rapaz.
E, depois, num sopro breve: “Vamos pra casa, Átila, meu flagelo”.
 
 
Conto antigo, talvez pedaço de uma novela, (gosto imenso dele, não sei porquê) e que publico aqui por ocasião do primeiro aniversário deste blogue
publicado por Luís Naves às 11:22

link do post | comentar | ver comentários (6) | favorito

.mais sobre nós

.pesquisar

 

.Setembro 2010

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30

.posts recentes

. Penúltima canção

. Cena de ciúmes

. Naquele tempo

. Nada e o mundo

. Na varanda das noites

. O seguro

. Aos domingos

. Onde os pássaros mordem

. Uma coisa estúpida

. London distance call

.arquivos

. Setembro 2010

. Agosto 2010

. Junho 2010

. Maio 2010

. Abril 2010

. Março 2010

. Fevereiro 2010

. Janeiro 2010

. Dezembro 2009

. Novembro 2009

. Outubro 2009

. Setembro 2009

. Agosto 2009

. Maio 2009

. Fevereiro 2009

. Janeiro 2009

.tags

. todas as tags

.links

blogs SAPO

.subscrever feeds