Minha mágoa envelhece devagar
A morte vem mais longe do que parece
e as feridas nunca param de sangrar
nessa profunda noite que arrefece
Um vento triste tenta esvaziar
a dor tranquila que me endoidece
pensando na incerteza de encontrar
um grito que do medo transparece
Quando a solidão áspera fica espuma
se a pequenez do total se apercebe
esvaio-me exangue, em luz pura, em suma
Sei que sobra o que nunca se concebe
sou a sombra fugaz de coisa nenhuma
que do amargor apenas desgosto recebe
Dias de bronze.
Sons que pingam e sombras vermelhas.
Todos vivemos horas que nos atravessam
de tão ausentes, na inflexível soturnidade.
A poeira regressa.
Memórias nas suas mãos, fragmentos de riso
e beijos de chocolate em postais vindos de perto.
Palavras como "lembras-te" e "faz hoje anos que".
Avançar o tempo.
Acontecer o mistério e esse tempo parar
ou pelo menos ter o sabor de uma praia.
Dizer assim: "Agora fico aqui". E ser verdade.
Não é trivial a vida de um banqueiro
Mas foi para isto que subi neste edifício
Apenas dez por cento de sacrifício
Assim funciona o mundo financeiro
Sete mil despedidos em setenta mil
Se ao menos tivesse um sector gangrenado
A urgência seria mais verosímil
E só para isso daria meio ordenado
Inútil, esta é uma ideia mesquinha.
Sabendo embora que não consta uma linha,
procuro no texto algo sobre os efeitos
Um facto conhecido, não somos perfeitos.
Preferia uma solução cirúrgica, talvez,
Sei que um dia será a minha vez
Mas este corte terá de ser cego,
As minhas convicções nunca renego.
Sete mil quase parece desperdício
no entanto será apenas o início
Na redução do excesso de custos.
É simples: os bancos têm de ser robustos
A sua lógica é sempre ao contrário
E assinar este memorando é necessário.
Entre os trabalhadores que estão parados
Escolherão sempre os mais desgraçados.
Que cruel é esta crise maldita!
A sorte de cada um já está escrita
Perde quem deu mais, quem for frágil
Fica apenas quem se mostrou mais ágil
Mas desta maneira fica a economia
bem mais resistente e saudável.
Um passo decisivo em cada dia
Torna o nosso banco mais viável
Pensar tanto vai-me na alma pesando
Mas alguém tem de saber dominar o povo
Por isso, sento-me na cadeira de novo
E, sem hesitar, assino o memorando.
Rasteja o rumor da cidade
Pela casa adormecida.
Sinto pequenos dentes
A escavarem a noite
minando as suas muralhas
de pedra envelhecida.
Movo em vão o meu corpo
Na bruma doente, humedecida.
Viro-me de novo, lentamente
dentro de voláteis pensamentos
que querem deslizar no tempo
da madrugada vencida.
Já ouço os curtos passos
Na hora amanhecida.
São os outros infelizes
Que tal como eu faço
Esperam o sono docilmente
Como se esperassem a própria vida
Nestas margens da brisa ergo-me solitário.
Escorre chumbo líquido pela terra dourada,
a quente emoção do medo emerge do nada
e a miragem brilha no horizonte refractário.
Vagueiam turbilhões de calor e de poeira
vozes de areia onde perto algo rasteja
e o visível é incerto, talvez nem ali esteja,
sopra vento imperfeito em abismos sem beira.
Desolação da alma, respira-se demasiado
Meu coração rebenta, os sentidos em revolta
e sufoco no mundo morto largado à solta
que, solitário, prefiro viver condenado.
Se eu voltasse atrás, o que faria?
Podia fazer tudo o que não fiz
poderia querer tudo o que não quis
sabendo, embora, que nada mudaria.
O destino decidiu o que seria
Falaste como fala uma boa actriz,
guião desenhado no quadro a giz
e disseste-me adeus, e chovia.
Percebo bem que não foste sincera.
O que ia acontecer era o que era
e um adeus não tem de ser desistente.
Mas se penso em ti e quero mudar
a vida não recua, está sempre a andar
e desistir de nós estava à nossa frente
Ali ficaste, parada, perante mim
como se fosses um simples enigma egípcio.
A boa história precisa de infeliz fim
algo de irreal que não pareça fictício.
O nosso labirinto andara ali bem perto
e seguíamos perdidos no exterior dele
o mais longe é como se fosse o mais certo
a distância entre nós é arrepio da pele.
Deixa-me, pois, levemente tocar-te
será esse o final da nossa história
Assim distante poderei enfim amar-te
pois o amor confunde e acerta a memória.
No começo, foi mágico feitiço
Eu fiquei deslumbrado e comovido
com teu sereno sorriso distante
Já caía o entardecer mortiço,
e no meio do tumulto incontido
o acaso convergiu num só instante
Vi primeiro o teu vulto no passadiço
entre a multidão e o intenso colorido.
Foi a visão breve da perfeição inconstante
Mas tive medo, pensei em compromisso
sorte assim deve ser de alguém iludido
tanta alegria à solta assusta o hesitante
Rodeado de imenso, fui omisso
o céu em brasa parecia ter ardido
e havia silêncio no ruído dominante
O esplendor ficara hirto e movediço
e escondi-me num amargor sofrido
na desistência do dia sufocante
Agora sei que o amor não é nada disso
que no crepúsculo há o caminho ferido
de quem ama de menos para teu amante
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