Dizem, uma eternidade inteira passou,
todo o tempo do mundo demorou
mas a morte da estrela gigante
lembra a minha tristeza errante
somente uma luz fraca que ousou
separar-se da escuridão que restou.
Afirmam que era o sol mais distante
no seu cosmos o menos cintilante.
Penso como está longe o que é finito
o tempo é a mão que fecha a porta
que faz esquecer o que não foi dito
Treze mil milhões de anos e um dia
um pouco mais de eterno pouco importa
para quem já se cansou que não vivia
O ponteiro das horas avança e destina
Sinto por dentro o sopro do deserto
a tua pele que a palidez ilumina
O teu olhar de esfinge, muito perto
Viver assim, ao contrário, desatina
tremo de acordar, de ficar desperto
minha alma tomba de uma colina,
o momento que nos resta é incerto
O tempo ouve-se cada vez mais forte
vejo-te, tesouro parado, desnorte
algo que ao acabar não mais acaba
Devo dizer-te adeus num só momento,
do deserto vem um sopro de vento:
adeus, amor, o nosso mundo desaba
Sou considerado um duro na minha profissão, um detective privado à moda antiga. Para alguém como eu, habituado ao submundo da violência, o caso da loura espampanante não passava de simples briga caseira. Mas não me interpretem mal, quando um detective com as minhas qualificações se mete ao serviço, pois bem, mete-se ao serviço.
O encontro com o marido enganado decorreu no country club, uma selva empresarial onde se fazem e desfazem negócios de milhões. Um tipo tem de andar ali com máxima cautela, desconfiar de cada transeunte e cada esquina, de tal forma são impiedosos os predadores, que reagem ao mínimo cheiro de dólares, tal como as piranhas são atraídas a grandes distâncias por minúsculas gotas de sangue.
Entrei no country club sem mostrar qualquer receio, aproximei-me de um tipo com ar de marido enganado, baixo, gordinho e careca. Tinha um aperto de mão que revelava um profissional de vendas, mas quando lhe perguntei o nome, percebi que não era Joe Babbitt, o homem que eu procurava.
A nossa conversa atraiu outra pessoa, um indivíduo alto e magro, com aspecto de rancheiro sul-americano.
“Eu sou Joe Babbitt”, afirmou o recém-chegado, que vestia um sóbrio casaco de flanela, com lenço piroso no bolso, à altura do coração. Sentámo-nos num local discreto, de onde se podia ver a piscina, para onde a brisa leve arrastara algumas folhas melancólicas, que agora flutuavam como barcos de papel num lago tranquilo.
Joe Babbitt era um homem de negócios com reputação na cidade, habituado a conversas francas. No entanto, falou-me do problema dele com rodeios, como se estivesse a descrever uma tribo de índios a cercar Forte Apache, em pleno carrossel de indirectas.
“Portanto, Joe, está a tentar explicar-me que a sua mulher tem um amante”, interrompi, com suavidade.
Ele corou, a ponto da restante pele parecer a parte branca da bandeira americana.
Lá conseguiu balbuciar que me pagava mil dólares para arranjar fotos comprometedoras da sua mulher com o amante, um actorzeco da arraia miúda, que a louraça conhecera em Hollywood, quando fora estrela de celulóide, flausina de filmes B. E Babbitt mostrou-me a fotografia dela, bem melhor do que eu tinha imaginado. Um facto era indiscutível: a tipa tinha demasiadas octanas para o meu cliente. Vocês, leitores experientes, conhecem o enredo: o marido é piranha graúda, mas a sereia anda na atmosfera a seduzir marujos de passagem.
Eu podia escrever argumentos de filmes negros, de tal maneira adivinho as histórias logo desde o início, mas as conversas iniciais com o maridinho não me tinham preparado para uma lasca daquelas. A madama era um mulheraço de fazer parar o trânsito. Podia, sem escândalo, ser declarada monumento nacional. E espantei-me: as coisas que Hollywood anda a mandar para o lixo. Certamente, excesso de bebedeiras nos departamentos de casting dos grandes estúdios.
O tal Babbitt não quis adiantar muito mais das suas aflições. Pediu-me que agisse com a máxima cautela.
Mas não se engana cá o je. Montei o estaminé em frente à mansão, à espera da primeira jogada. Não tive de esperar muito. Nesse dia, manhã cedo, ela saiu de casa com peruca e óculos escuros. Um disfarce quase infantil. Seguiu para a cidade num cadilac descapotável, cor creme, sempre a velocidade média, como se soubesse que eu estava ali, a segui-la com toda a descrição. Quando chegou à baixa, entrou num parque de estacionamento e escolheu um lugar na primeira cave. Segui-a. Fiquei ali perto, a observar sem pressa como ela saía do estacionamento. A boazuda saiu e eu esperei um tempo lá embaixo, para não ser detectado.
E foi ali que se deu a primeira situação extraordinária deste caso.
Estava a caminhar, no meu jeito furtivo, ainda no estacionamento, quando a cinquenta metros de mim apareceu um homem de chapéu, que felizmente não me viu, e que na mão tinha uma espantosa metralhadora modelo thompson, igualzinha à que usava machine gun Kelly. E logo a seguir veio outro homem. Apesar dos fatos de flanela impecáveis, onde nem faltava uma rosa no bolso da lapela, os tipos colocaram-se em frente a um carrão estrangeiro, cheio de cromados, e subitamente regaram-no com tiros, como se estivessem a usar uma mangueira para o lavar. A lata do espada saltava e fumegava e eu só pensava que era bem melhor que não estivesse ninguém lá dentro. Colei-me às sombras e esperei que aquilo acabasse.
Os intrusos terminaram o trabalho e afastaram-se.
“Foi pena o Bugatti, tão bonito”, disse um deles. Depois, ao longe, ainda ouvi a chiadeira de um carro que largava, esbaforido, pela cave do estacionamento, e quando fiquei certo de que tudo acabara, saí do meu refúgio e aproximei-me do carrão, que jazia, semi-destruído, falecido no asfalto.
Lá dentro, entre manchas de sangue, estava um homem morto, crivado de balas, feito em picadinho e pouco bonito. Ar de estrangeiro, spaghetti. Sem dúvida, o tal Bugatti.
Não havia muito para ver e achei que era mais importante seguir com a minha missão, apesar de nessa altura ainda não avaliar bem se o tiroteio na garagem teria alguma coisa a ver com o caso da antiga actriz de Hollywood e do seu amante que se convertera à televisão.
Corri para a superfície e lá estava ela, a loura espampanante, entre a multidão. Saíra da garagem mesmo a tempo de nem sequer ouvir o barulho das thompson. O perfil dela era inconfundível, mesmo vista de costas e a uma distância de 200 metros: a forma de gazela como atravessava a rua, ao mover aquelas ancas de fazer enlouquecer um nefelibata. Tornava-se muito fácil vigiá-la. Tinha o melhor par de pernas que já vi e foi nessa altura, quando a estava a seguir discretamente na avenida 56, no meio do trânsito matinal, que percebi o interesse de Joe Babbitt, o marido enganado.
A gaja agiu bem, tentou despistar eventuais seguidores e, se tivesse sido perseguida por um amador, a pista tinha-se perdido. Deu-me as voltas num hotel da baixa, ao entrar por uma porta e sair pela outra, mas eu tinha previsto a manobra e continuei a farejar a presa. Mudara de farpela, para um vestido cor de creme, que lhe ficava a matar. Depois, entrou numa estação de metro, apanhou a primeira composição e saiu na estação à frente, mas só no último momento, para detectar eventuais seguidores. Claro que eu tinha antecipado o truque e continuei a segui-la, já quase apaixonado por aquele movimento de ancas, uma verdadeira máquina de hipnotizar coelhos.
Por instantes, até me imaginei enrolado com a dama, quando ela entrou numa casa de banho pública e eu fiquei fora à espera. Foi ali que ela mudou de disfarce, uma boa manobra para despistar principiantes, mas não me deixei enganar. A louraça era uma excelente actriz e este truque clássico tinha sido utilizado num dos seus filmes. Saiu na forma de velhinha insignificante, com saquinho das compras e tudo. Comecei a admirar o petisco.
No fundo, bem lá no fundo, sou um duro de coração mole. Continuei a segui-la, mas agora com extrema admiração e atenção redobrada. Quase tive pena de ser obrigado, por contrato, a sacar as famosas fotos comprometedoras. Subimos pela avenida 75, a loura espampanante a fazer de velhinha indefesa, e eu 50 metros atrás, a apreciar aqueles sinais inconfundíveis das ancas num movimento sensual e as curvílineas que se adivinhavam atrás da vestiota da velha, uma espécie de saco de serrapilheira que visava esconder toda a sensualidade do mundo.
A loura espampanante disfarçada de velha com sex-appeal de camionista subiu toda a rua 75 e depois meteu pela rua 43, que como sabem é meio enviesada. Numa precaução que quase me traiu (foi brilhante, devo dizer) parou num bar da esquina e enfiou um copo de bourbon, olhando manhosamente para ver se tinha sido seguida. Só depois se dirigiu para o hotel onde estava o amante, o antigo actor de Hollywood que fizera três filmes bastante maus sobre detectives privados, antes de cair em desgraça e ser obrigado a tornar-se a vedeta de uma série de televisão sobre um detective privado, uma espécie de Kojak, que levava porrada todas as semanas (uma das minhas séries favoritas, diga-se de passagem).
Não vou entrar em pormenores, mas descobri que a lasca loura disfarçada de serrapilheira subira para o quarto 545 do hotel metropole. O nome do hotel e o número do quarto são irrelevantes. O que importa é perceber que havia uma escada exterior e que se podia, com alguma habilidade, colocar uma câmara que me permitia fotografar o interior do quarto.
Foi o que fiz nos minutos seguintes. Empoleirado no quinto andar, como se estivesse a lavar as janelas, lá consegui colocar a máquina fotográfica num ângulo que registava toda a acção.
Já vinha a descer, quando me cai um tipo em cima. Houve uma luta terrível e quase caí cinco andares. Então, reconheci as fardas das brigadas de intervenção do FBI. Foi a surpresa que me fez baixar a guarda e levei um uppercut nos queixos que me deixou meio abananado. Só acordei em frente ao meu amigo Denzel Washington, que é um dos comandantes do FBI na luta de contra-espionagem.
"O que estás aqui a fazer?", perguntou o Denzel.
Não havia razão para lhe ocultar a verdade:
"Estou a seguir uma loura que se encontrou com o amante, um antigo actor de Hollywood, no quarto 545".
"No quarto 545 houve um encontro entre dois espiões soviéticos", disse o Denzel.
"Devem ter sido os ocupantes anteriores. Estes, eram dois amantes. Uma loura e um actor falhado", expliquei.
"A tua loura é uma velhinha de 70 anos que roubou o segredo da bomba atómica", afirmou o Denzel, que me queria acusar de cumplicidade atómica.
"Não te deixes enganar pelo disfarce”, disse-lhe. “Ela, a loura, é uma excelente actriz. Não sei porque razão Hollywood não a aproveitou. É muito mais boa do que a Olivia de Havilland".
"E eu sou mais bonzinho que o Errol Flynn..."
"Pois, tu és o Denzel Washington".
Impaciente, o meu colega do FBI abriu uma porta do quarto e lá estava, sentada na cama, com os óculos pendurados no nariz (parecia uma professora primária) a velhinha com a sexualidade de camionista e um saco de compras na mão. Era a mesma mulher que eu seguira, depois da mudança de disfarce na casa de banho pública. A seu lado estavam dois enormes gorilas do FBI (e isto não é uma metáfora).
Tentei tirar a peruca à velhinha, mas ela deu um berro:
“É uma vergonha, seus fascistas, estou a ser torturada”, gritou a criatura.
O cabelo branco era verdadeiro.
"O ‘amante actor’ não passa de um coronel do KGB chamado Petrov", explicou-me o Denzel.
Petrov tinha uma grande barriga.
“Não sou do KGB. Sou um halterofilista búlgaro e estou totalmente inocente”, afirmou Petrov. Mas ninguém lhe ligou pevide.
"E onde está a loura?", perguntei.
"Qual loura?"
Nesse momento, percebi tudo. Quando esclareci o equívoco com o Denzel, ainda corri até à casa de banho pública. Fiquei em frente à porta talvez duas horas, à espera que a loura espampanante saísse, mas ela não saiu. Onde estaria? E aproveitei aquele tempo para começar a redigir mentalmente o meu relatório para o marido alegadamente enganado. Diria assim: "A sua esposa tem um comportamento exemplar, viu montras e fez compras, passeou pela baixa. Tenho esta boa notícia: as suas suspeitas de infidelidade não se confirmam".
E, apesar de tudo, uma centelha de dúvida ainda bailava na minha mente. Qual seria a relação daquilo tudo com Bugatti, o spaghetti que fora morto na garagem? As pistas pareciam acabar ali. O caso tinha pontas soltas, pensei, e uma evidente nuvem de culpabilidade pairava sobre aquela paisagem repleta de mentiras e de meias verdades. Uma história mal contada, sem dúvida. Mas no relatório para o feliz magnata do country club não cabiam estas especulações mais ou menos filosóficas.
(Esta é uma versão de um conto mais curto publicado nos Prazeres Minúsculos, em 2006)
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