Sexta-feira, 11 de Setembro de 2009

Nevoeiro

 

No denso nevoeiro, ele deixara de ver os objectos na sua proximidade e o mundo em redor ganhara brilho etéreo e consistência disforme.

Largado ao acaso pelo caminho, tentou não abandonar a precária vereda de lama, até distinguir com alívio o vulto indefinido da paragem do autocarro a emergir naquela sopa cinzenta.

A paragem estava num ermo desabitado e tinha uma pequena construção (aberta em dois lados, com o banco corrido ao meio); ficava fora do bairro de Santa Luzia, cujos prédios altos pareciam ter mergulhado num oceano imóvel, sufocados na profunda distância.

Toda a gente conhecia os horários dos autocarros. Para chegar à estrada, os habitantes tinham de atravessar o campo, caminhar algum tempo por terrenos onde apenas cresciam umas ervas ralas.
Quando atingiu a estrada, reparou que na paragem estavam três pessoas: um velho, uma rapariga e o seu vizinho do mesmo prédio, que trabalhava na fábrica ao fundo, a meia hora de viagem.

“Ah! És tu?”, atirou-lhe o vizinho, apesar de tudo sem aparente interesse no que dizia: “Parecias um fantasma”.

Era um homem dos seus 50, corpulento e grave, que nunca metia conversa. Dessa vez, encolheu os ombros e continuou a falar, talvez para afugentar alguma má sensação:

“Vimos uma forma que se aproximava de nós e nem parecia de uma pessoa”.

“Era só eu, não havia mais ninguém”.

“Este nevoeiro assusta”, disse a rapariga. “Até parece que abafa tudo à nossa  volta”. Olhou para o recém-chegado, que deitou uma gargalhada curta:

“Está tudo bem, não se preocupem”, disse ele.

Depois, ficaram os quatro em silêncio. A rapariga era estudante, devia ir para o liceu; o velho tiritava de frio, sentara-se no banco corrido, como se tivesse falta de ar.
“Quando chega o autocarro?”, perguntou o recém-chegado.
“Meia hora de espera!”, explicou o operário. “Isto está cada vez pior”.
Queria dizer o serviço, mas era homem de poucas falas.
Não apareceram mais passageiros. O nevoeiro adensara, sólido muro a separá-los do bairro, cujo rumor se dissolvera no nada. A humidade dificultava a respiração e o frio produzia uma dor de fundo, como se tivessem sofrido um espancamento minucioso. O tempo por vezes acelerava, depois sofria síncopes fragmentadas e parecia prolongar-se além da atmosfera liquefeita.
“Não podemos ficar eternamente aqui isolados”, disse o recém-chegado. “Talvez haja alguma greve ou provavelmente pararam o serviço por causa do nevoeiro”.

A rapariga concordou, com um gesto que dizia tudo sobre a sua angústia.
“Temos de ser pacientes. O autocarro deve estar mesmo a chegar”, resmungou o velho.
Tentaram ouvir algum barulho de motor que se aproximasse, mas além do nevoeiro havia apenas o indefinível e a estrada vazia.
“Silêncio de morte”, disse o recém-chegado, repetindo a expressão que lera num livro.
“Como se isto tudo fosse tirado de um sonho mau”, interrompeu o operário, que não era dado a metáforas.
“Uma hora à espera do autocarro não é normal. Vou regressar a casa”, disse de repente o recém-chegado, após uma pausa longa.

“És capaz de ter razão, já não há autocarro, mas eu preciso de ir trabalhar”, afirmou o operário.

“E como saímos daqui, se não se vê nada?” perguntou a rapariga, um pouco aflita.

“Vamos pelo mesmo caminho, a olhar onde pomos os pés. Não deve haver azar”, decidiu o recém-chegado, que avançou para o exterior da paragem. E a rapariga seguiu-o de perto. “Não me deixe para trás”, implorou.
Passou mais tempo. As sombras dos dois jovens tinham desaparecido na bruma espessa. O operário cansou-se:
“Vou seguir pela estrada”, anunciou, dirigindo-se ao velho: “Venha daí também”.
“Prefiro ficar, o autocarro não tarda”, respondeu o velho.
O operário encolheu os ombros e lançou-se à caminhada.
Pouco depois, meio espantados, o operário, o recém-chegado e a rapariga saíram do nevoeiro. Encontraram-se, confusos, na margem da neblina e num prado imenso de onde se avistavam os prédios da orla do bairro, muito iluminados e com o seu ruído próprio de corpo vivo.

Sem transição, o nevoeiro desaparecera. O operário começara a descer a estrada e os dois jovens tinham seguido pela vereda no descampado, mas agora estavam juntos, como se tivessem escolhido o mesmo caminho.

“O nevoeiro era só naquela parte da colina. Afinal, deve haver autocarros”, disse o operário.

“Não estou a ouvir nada...”, atalhou o recém-chegado.

“É melhor regressarmos, ainda perdemos o próximo”, insistiu o operário.

Regressaram os três ao ponto de partida, até correram. O sol regressava e viram as pegadas que tinham deixado na vereda de lama, até que já não havia pegadas, apenas o mesmo caminho desolado. E quando chegaram à paragem de autocarros, o local estava silencioso e vazio.

Restava uma ligeira névoa dissipada e o idoso desaparecera.

Ainda se perguntaram quem seria o velho e para onde tinha ido, mas nenhum deles sabia.

Não o voltaram a ver. Perguntaram a outras pessoas, mas não havia palavras que o descrevessem com precisão. Talvez nem estivesse na paragem, afinal, e todos esqueceram aquele episódio, a forma estranha como o nevoeiro levantara, aquele velho que ficara para trás e, que momentos depois, já não estava ali.

O caso foi sendo esquecido com o tempo, mas o mais estranho é que, por vezes, na paragem de autocarro no campo ermo à beira do bairro de Santa Luzia (apenas em tardes de vento sóbrio) parece aos viajantes mais sensíveis que alguém diz “não tarda, não tarda”, como se fosse um sussurro que primeiro está ali e depois já não está.

Mas, enfim, tudo pode não passar de uma simples lenda ou de bizarra ilusão sonora que o vento produz sem razão.

 

(Adaptação de um conto publicado em Dezembro de 2006 no blog Prazeres Minúsculos) 

 

publicado por Luís Naves às 14:44

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