Segunda-feira, 17 de Agosto de 2009

Vincent

 

O robot M36-42B aprendeu a pintar apenas três meses depois de ter saído da fábrica. Os engenheiros não deram muita importância a esse desvio da função primordial da máquina, que era a de despachar impressos de modelo A nas Finanças. “Ele começou a imitar os humanos”, concluiu um dos engenheiros, “deve ter visto alguém a pintar, talvez num programa de televisão”. Assim, foi permitido a M36-42B ocupar algum do seu tempo livre com telas e pincéis e tintas, já que não podia ocupar-se de sonhos. Comprava o material com o próprio salário (os robots recebiam pequenos estipêndios, para comprarem roupa, por exemplo, o que também fazia circular a economia).

Naquela época, estas máquinas (pelo menos as deste modelo) eram construídas para não durarem muito tempo, três ou quatro anos, no máximo. Os robots eram parecidos com pessoas, mas desengonçados, de ventres largos e pernas curtas. Muito feínhos, ocupavam-se de tarefas menos inteligentes.

 

Durante um ano, M36-42B pintou paisagens e naturezas mortas, mas em certo dia começou a alterar o seu trabalho e a pintar cenas onde surgiam figuras humanas, desenhadas com toda a perfeição. Em telas medianas, geralmente rectângulos com pouco mais de meio metro no lado mais comprido, o engenhoso robot usava uma paleta rica, baseada em vermelhos, azuis-da-prússia e verdes de variadas matizes, magentas, ocres, enfim, cores alegres e vivas; tentava também fixar a textura cromática da pele e os seus reflexos elaborados; e, acima de tudo, era muito delicado na composição das cenas; por vezes pessoas sentadas em cafés, gente bonita a passear nos parques da cidade, ou ainda em poses banais do quotidiano, a comprarem flores ou sem nada de especial para fazer, numa conversa, numa tarefa doméstica, aparentemente tranquilas e pacíficas, sem pressa; iniciando o gesto de querer dizer alguma coisa, um pequeno segredo, a confidência, a banalidade; havia quadros onde surgiam humanos à janela, a observar quem passava, ou velhos trocando ideias, crianças a correr, pessoas a comer, com alegria, ou mimando animais de estimação.

 

Em certa ocasião, o robot começou a pintar o que pareciam ser outros robots, desengonçados e feios. Mas, em vez de os retratar em trabalhos cansativos que concluíam sem emoção, ou seja, a realidade, M36-42B colocava-os em poses de conversas aparentemente humanas ou no que pareciam ser cenas de pacata existência sem utilidade visível. Estas novas figuras não pareciam estar a fazer qualquer coisa, a trabalhar ou exercitar as funções próprias do género, o que era bem insólito.

Numa das telas, por exemplo, um pássaro poisara na cabeça de uma destas personagens e o que parecia ser o robot (tinha ar atarracado e feições monstruosas) sorria tão absolutamente que se poderia pensar no retrato de uma máquina que experimentava uma emoção de felicidade, ao ter o pássaro poisado na sua cabeça. Era quase inquietante.

Nesta altura, as telas começaram a ficar mais luminosas, com cores mais irreais, desenho mais impreciso, composições mais complexas. Algumas pessoas começaram a ficar interessadas no tema e a discussão espalhou-se. Era arte ou imitação?

 

Um dia, apareceram dois homens no pequeno estúdio que o robot usava para o seu trabalho de pintor. Era um conhecido crítico que acompanhava um importante negociante de arte. No caminho, os dois homens tinham discutido o assunto, mesmo antes de verem as telas:

“Os pintores sempre procuraram muita coisa”, dissera o crítico, “da impressão do momento ao ponto de vista de Deus que tornava a humanidade toda igual, como um disciplinado rebanho. Mas há um ponto em comum a todas as épocas: a busca essencial do ser humano, da nossa alma, quero dizer. Os robots são máquinas e, por definição, não possuem alma. Como podem eles procurar algo que não entendem à partida?”

“E nós entendemos?”, perguntara o negociante.

Os dois desconhecidos entraram no estúdio e começaram a observar o trabalho de M36-42B. O crítico apreciava o seu interesse formal, enquanto o negociante avaliava o potencial valor. Cada um via coisas diferentes e o crítico era ainda o mais céptico. Quase desdenhoso, gozando um pouco, fez algumas perguntas ao robot. Porque escolhera aquele tema; e a máquina respondia de forma evasiva:

“Posso chamar-te Vincent?”, perguntou a certa altura o crítico, embora estivesse com vontade de rir.

“Nós, os robots, não temos nomes”, respondeu M36-42B.

“Os vossos números de série são complicados e esqueci-me do teu. Chamo-te Vincent…”

“Se quiser…”

Dirigindo-se apenas ao negociante, o crítico ia comentando em voz alta e falava como se Vincent não estivesse ali:

“Veja esta pintura”. (Era uma tela que mostrava um ser aberrantemente feio a rir-se de nada). “É como eu lhe dizia há pouco, a imitação da busca do conteúdo puro, da essência do objecto, mas apenas como simulacro. Se todos os artistas devem tentar apanhar alguma coisa de universal e eterno, que pode haver de universal e eterno numa máquina que pensa estar feliz. Que pode um robot saber da verdadeira felicidade? Mas perguntemos ao artista: Vincent, que sabes tu da felicidade?”

O robot procurava as palavras:

“Vejo pessoas felizes na rua”, disse, hesitando.

“Mas já sentiste a felicidade  ou outra emoção qualquer, por muito básica? Medo, inveja ou desprezo?”

Houve um silêncio penoso, que o próprio crítico quebrou:

“Vejo que não. A pintura humana é a busca de qualquer coisa, de uma ideia, por exemplo, mas sobretudo a procura da perfeição do humano”. No meio da prelecção, o homem segurava outra tela, esta mostrando dois robots sentados num jardim e que pareciam (loucura), pareciam apaixonados um pelo outro; e a cena estava desenhada com formas quase incorrectas:

“Se a máquina pode desenhar com perfeição geométrica, então porquê estas imperfeições evidentes? O que procuraste neste caso, Vincent? Que a emoção humana aqui transferida toscamente para duas imagens é absolutamente imperfeita? Ou que do ponto de vista do robot, aquilo que é humano equivale à imperfeição?”

“Queria contar a forma como os dois conversavam, a maneira simples…”

“Mas isto não é real, apenas errado. Será que procuras a imperfeição? Como se houvesse uma vida oculta e mais perfeita nos robots?”

“Sim”, respondeu Vincent, mas sem que se percebesse a qual das duas perguntas respondera.

Os dois humanos ficaram calados.

“É pena não poderes perceber o que é ser humano”, disse o crítico, “mas esta imitação de arte é sem dúvida interessante, como entertenimento”.

O negociante também se despedia. Decidira não avançar com uma exposição do trabalho, pois não queria polémicas.

 

Nas seis semanas seguintes, Vincent iniciou várias telas, mas não conseguiu terminar nenhuma delas. Tentava desenhar, mas não acabava os traços, pois deixara de saber por onde seguir. E as cores escolhidas pareciam-lhe desadequadas; depois, tentava desfazer tudo e recomeçar, mas era como se tivesse perdido o impulso que antes o fizera pintar robots vivos e surpreendidos, que tentavam descobrir no mundo um sentido para a sua existência interior.

Ao abrigo de um privilégio na altura ainda bastante utilizado, R36-42B pediu para ser desmantelado, o que se concretizou dois meses depois da entrevista.

Muitas das suas peças foram reutilizadas em modelos mais avançados.

 

 

publicado por Luís Naves às 21:03

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Terça-feira, 11 de Agosto de 2009

As veredas

 

Todas as noites, terminadas as aulas do liceu, o professor de física regressava a sua casa e cortava pelo atalho no parque para ganhar alguns minutos. Vivia sozinho, mas não gostava de perder tempo e o passeio ajudava-o a pensar em coisas estranhas, na consistência do cosmos ou em mundos paralelos. Dessa vez, tivera um pressentimento funesto, que se acentuou com as sombras densas do arvoredo, que o vento fazia esbracejar, tal qual uma multidão de alucinados discursos. Mas o ligeiro medo não foi suficiente para ele decidir fazer o caminho mais longo. Como sempre, tinha pressa. Prosseguiu com a rotina metódica, apesar da má sensação que se lhe colara ao corpo. Apenas protegeu mais o peito, fechando o casaco de Outono (demasiado leve) com as duas mãos, assim unidas numa espécie de reza, e lançou-se pela vereda escura, sem mais hesitações, passo acelerado, a cabeça inclinada para um chão que mal se via.

A travessia pareceu durar mais tempo do que era habitual. Tudo ondulava à sua frente, como um grande mar agitado, e a luz difusa que vinha dos candeeiros públicos da estrada, mais além do parque e cada vez mais longe, apenas sublinhava o clima confuso da floresta do parque público, a sua entranha em túnel e a cinzenta escuridão que o engolia num tumulto. Também devia ser assim o turbilhão do espaço primordial, pensou, com nitidez distraída.

De súbito, sentiu-se flutuar. Tropeçara e caiu, mas como que em câmara lenta, sentindo todo o percurso até ao chão. Os pensamentos estatelaram-se com ele e teve na boca a amargura do solo húmido. A nuca doeu-lhe de forma aguda e as mãos esfoladas pareciam ter mergulhado em ácido; durante algum tempo (a imprecisão do quanto) não viu mais nada, nem sentiu mais nada, nem cheirou ou tocou mais nada. Fora arrastado num abismo de nada e deixou-se arrastar.

O corpo dorido estendera-se na relva do caminho (seria relva esponjosa?) e percebeu que se suspendera a dança das ramagens; as folhas das árvores, subitamente amansadas, pairavam num contraste de escuro negro com fundo azulado escuro. A luminosidade do próprio tempo, meditou, a qual respirava do fundo dos tecidos fragmentados do mundo. Deixou-se levar nestas ideias, embalado na noite, encantado com a maneira como suavizara a ventania. Foi então que sentiu a música, que vinha de um recanto do parque. E viu os farrapos de luz eléctrica e as sombras. E ouviu os risos de gente. Iria lá pedir ajuda. Afastou o cobertor de folhas que tinha em cima.

Nem soubera que nessa noite havia festa no parque. Era um facto surpreendente. Sem o vento, a temperatura tornara-se amena. Abandonou a vereda e passou por entre as folhagens (o chão de folhas derretia-se sob o peso, numa carícia), abrindo caminho entre arbustos, e tornava-se mais intensa a música e mais brilhante a luz. E ali estava, perante a sua surpresa, a clareira cheia de gente feliz, de barracas de divertimentos e bebidas, carrosséis, famílias em passeio, a confusão habitual das festas da cidade. Que eram sempre no Verão.

E pensou, com clareza, como era estranho não ter sabido.

Avançou na direcção das pessoas.

Toda a gente vestia roupas leves e ouviam-se pedaços de conversas: vem cá anuska, não gosto dele, apetece beber; e a música tocava, bonito como o raio; quero ir ao carrossel, ficamos mais um pouco, a mãe disse…, quase no final…, um filme muito…, tens de ler…, demasiado caro…; o cheiro imenso do açúcar e da cerveja derramada; e a música prosseguia, lenta; anuska não te percas; e a banda soprava no estrado e viu os músicos que suavam como se saíssem da piscina; e nem uma folha do arvoredo bulia, (como compreender o frio?) e o céu estava limpo e estrelado por cima, abóbada perfeita e solene; e ao longe um sino; e flutuavam anjos; vem cá, minha estúpida, gritou alguém.

Ao entrar no meio da multidão que se acotovelava, viu que algumas pessoas olhavam para ele com reprovação; bêbado, neste estado, coitadinho; e que se afastavam.

E foi num incerto momento que ficou em frente a uma mulher que o olhava de forma insistente, como se fosse míope: era morena e bonita; cabelo à garçonne; em roda de trinta anos; blusa vermelha decotada; um corpo redondo e cheio, a saia comprida, calçava sandálias. Pareceu-lhe tudo isto, mas viu sobretudo a expressão de horror, ou melhor, de surpresa e espanto:

“Que estás aqui a fazer? Como é que mudaste de roupa?”, disse ela, voz muito aguda.

Ao lado da desconhecida, caminhava um homem alto:

“Cláudia, o teu marido é maluco. Como é que os alunos o aturam?”. O tipo apontara na direcção dele, professor de física, que saíra de uma vereda ventosa num parque vazio para deparar com aquela impossibilidade. E, por uma qualquer magia, os dois desconhecidos sabiam quem ele era, e a mulher que se chamava Cláudia (assim dissera a outra figura) seria a sua própria mulher (que não tinha).

“Isto é impossível”, disse o professor, sem nexo, cheio de frio, a segurar o casaco.

“Vinhas atrás de nós”, implorou Cláudia, à beira da histeria.

“Mundos paralelos”, gaguejou, “caminhava a pensar neles, outros universos, mas é precisa demasiada energia…”

Não podia explicar.

“Cláudia, o teu marido está bêbado”, disse o desconhecido, a rir-se. Pareceu-lhe que rira maldosamente. Com sarcasmo e ciúmes, talvez.

E, de súbito, numa angústia, a mulher apontou o dedo e gritou o nome dele. Como é que o conhecia, se nunca se tinham encontrado? E foi então que… sim, não havia dúvida, era ele mesmo, o professor de física, mas noutro tempo ou noutro universo, a caminhar de trás, no meio da multidão, ainda a dez metros de distância, a aproximar-se; vestia uma camisa suada, ainda não o vira a ele, o viajante surpreendido no presente, mas então os olhares cruzaram-se, ou melhor, a personagem que era o outro eu irreal viu-se a si mesmo, (eu consciente) embrulhado num casaco de Outono e cheio de frio e dores na cabeça…

O mundo explodia e o professor não conseguiu enfrentar aquela realidade impossível: virou-se, fugiu da luminosidade, em direcção da noite. E ainda ouviu, durante algum tempo, Cláudia que gritava mais vezes o seu nome, e vozes confusas e a música que se diluía.

Voltou o breu à volta e ergueu-se de novo o vento. Tropeçava e doía-lhe a cabeça, mas continuou a caminhar. Deixou de ver, mas as pernas moviam-se, mecanicamente; até que chegou ao fim do parque. Havia uma estrada, à esquerda, mal iluminada, excepto a luz de uma paragem de autocarro. O vulto de uma rapariga, numa gabardina creme. Ela sentara-se na paragem, sozinha. À espera do último autocarro, pensou o viajante. Caminhou para ela, cambaleou, e viu como a rapariga se assustava com aquela figura que emergia de súbito da noite, como fazem os assassinos.

Ela ainda tentou fugir, mas ele pediu-lhe ajuda, e a voz débil convenceu-a:

“Ajude-me, sou professor do liceu…”

“Que se passa?”

“Tive um acidente, talvez um ramo em queda…”

E o professor de física, muito racional, deitou-se no chão. Agora, tudo era evidente e voltava a fazer sentido: um ramo de árvore batera-lhe na nuca e tivera uma alucinação luminosa, onde apareciam pessoas fictícias. Apesar da escuridão, a mulher da gabardina creme viu o sangue que jorrava da cabeça dele e o homem balbuciava alguma coisa sobre a festa no parque, a luz e a banda, e que imaginara tudo, até se riu no delírio, mas ela não percebeu nada do que ele dissera, pois o parque estava vazio. A mulher julgou que o desgraçado enlouquecera.

“Foi tudo imaginação minha”, conseguiu ainda dizer o professor de física, mas numa voz tão fraca que ela se aproximou para ouvir.

E foi nesse instante, quando a rapariga se moveu e a pele dela ficou iluminada pelo candeeiro público, que o homem viu com nitidez a cara dela: era a mesma morena que encontrara na zona de luz, na festa improvável, a do cabelo à garçonne, que o outro desconhecido afirmara ser a sua própria mulher. Exactamente a mesma.

“Cláudia”, balbuciou, num arrepio…

Ela abafou um grito, depois chegavam outras pessoas, ouviu-se a sirene da ambulância e, antes de ser levado para o hospital, ainda ouviu a rapariga da gabardina creme a explicar a um polícia, com a sua voz inconfundível e, agora, demasiado familiar:

“Eu não o conheço, nunca o vi, mas ele sabia o meu nome. Disse que era professor do liceu. É muito estranho, chamou por mim várias vezes”.

 

   

publicado por Luís Naves às 15:01

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Sábado, 8 de Agosto de 2009

Fragilidade

 

O empregado de mesa foi brusco comigo, a fingir que não falava línguas ou que não percebera qualquer coisa, o que atraiu a atenção de um homem que se sentava no café, na mesa ao lado da minha: não diria que fosse um obeso, mas tinha peso a mais, cabelo ligeiramente grisalho cortado curto e um olhar muito azul atrás dos óculos de modelo antiquado.

Sorriu para mim, por solidariedade, a propósito do empregado malcriado, como se pedisse desculpa pela parvoíce ou inabilidade do outro. Eu também lhe sorri de volta. Era um incentivo para ele meter conversa comigo, mas por mútua timidez houve um impasse e podíamos ter ficado ambos em silêncio. O desconhecido sabia que eu era estrangeiro, pensei que talvez não falasse línguas, por isso tentei a sorte no meu húngaro precário. Julguei que sabia completar a frase, antes de me ter lançado nela:

“Não ficou satisfeito…”. Eu queria dizer com a gorjeta, mas faltou-me a memória. Fiquei com ar estúpido, a olhar para a mão vazia, na esperança de encontrar as palavras em falta escritas na minha pele.

“Este exemplo não define o meu país”, salvou-me o desconhecido, que falara do empregado num francês rugoso e bárbaro, levemente carregado nas primeiras sílabas das palavras.

“Vocês são terríveis”, respondi, ligeiramente vexado por ele se exprimir em francês. “Quando alguém fala mal o húngaro, respondem noutra língua, para o impedirem de dizer asneiras”.

Ele riu-se:

“Tem razão. É a nossa resistência, suponho”.

Podíamos ter ficado por ali, uma conversa sem história. Mas, para mim, aquele desconhecido tornara-se interessante. Tínhamos escolhido a língua francesa. Perguntei-lhe se era da cidade e ele disse que não, que estava de passagem, que viera à procura de uma pessoa:

“E encontrou-a?”, perguntei, indiscreto.

Deitou-me um olhar estranho, como se parasse para pensar uma infinidade de coisas. Depois, moveu a cabeça, numa negação silenciosa; sorriu com uma tristeza que me impressionou.

“Não a encontrei”, disse ele.

Hesitei. Não podia perguntar-lhe sobre o que adivinhava atrás daquela frase. Uma mulher, talvez, uma paixão antiga. Qualquer coisa de nostálgico, de vagamente inquietante. Fiz um gesto solene para a minha mesa, convidei-o a sentar-se comigo, perguntei se queria acompanhar-me numa bebida. Ele recusou modestamente, com boa educação. Depois, começou a contar a sua história, antes que eu lho pedisse:

“Saí desta cidade há cinco anos, sem olhar para trás. Fui para a capital e reconstruí a minha vida. Na altura, ela disse que iria ter comigo, mas isso nunca aconteceu. Vejo agora que era apenas uma promessa caridosa, em que acreditei de forma ingénua. Entretanto, perdi-lhe o rasto e com o tempo fui percebendo que a minha existência era cada vez mais vazia. Eu sabia que o passado nunca se revive, mas arrisquei tentar reencontrá-la. Ela morava com a mãe num bairro da periferia desta cidade, procurei-as, mas já não moram lá e nenhum dos vizinhos sabe para onde foram; ela trabalhava nos armazéns centrais; veja, ficam atrás daquele edifício; ali, o de cor ocre; mas já não trabalha nos armazéns centrais e ninguém sabe para onde foi. Uma pessoa que a conhecia bem afirmou que talvez tenha regressado à terra dela, mas não tinha nenhuma ideia onde era essa aldeia ou vila. Enfim, procurei-a durante três dias e, ao fim de cada um desses dias, voltava ao quarto de hotel e sentia-me sozinho no mundo. E, ao fim do terceiro dia, algumas horas antes de me sentar aqui, neste mesmo café onde me sento agora, percebi finalmente que nunca a conhecera deveras. Nada sabia sobre aquela mulher, a ponto de compreender subitamente que ela nunca existira, excepto na minha imaginação, quero dizer, que preenche o que me falta na memória. Não tenho qualquer prova da sua existência: uma fotografia, uma lembrança que não seja imprecisa, um rasto, a certeza de que estou a falar com alguém que a conheceu mesmo a ela e não a outra mulher qualquer, apenas parecida. É como esta nossa conversa, que vamos lembrar cada um à sua maneira, a ponto de terem sido duas conversas paralelas e não uma apenas. E assim foi com esta mulher que procurei, que nunca encontrei de facto e portanto nunca perdi; a parte ínfima de uma ilusão na minha vida; uma forma em mudança, que vou esquecendo devagar, como o esquecerei a si talvez, também devagar”.

“Mas um grande amor como o seu é inesquecível por natureza, nunca se perde verdadeiramente…”, afirmei.

“Era demasiado frágil, percebe? Queria tanto acreditar que alterei a própria realidade, criando realidades paralelas. Não será o mundo que nos rodeia isso mesmo? Pontos de vista em contacto, momentos que se limitam a acontecer ao mesmo tempo? Connosco tudo era demasiado intenso, visto numa lupa imensa, que permitia chegar às próprias estrelas. Em cada gesto dela, em cada sopro dela, em cada palavra dela, eu extinguia-me em diferentes fragmentos de mim mesmo”.

“Assim será o amor autêntico. Felizes os que vivem um de verdade”

“Felizes ou infelizes, pouca distância existe entre os dois. Esqueça o que leu nos poetas. A memória é sobretudo um lugar fúnebre e as paixões são cemitérios de sonhos: pairam ali os odores da traição e do desencontro. Ao sair da vida dela julgava estar a protegê-la, mas era uma desistência. Tive medo daquele excesso que me sufocava. Foi uma fuga e uma libertação e encontrá-la agora seria um absurdo”.

O desconhecido ficou algum tempo em silêncio. Depois, ergueu-se lentamente. Disse-me que se chamava Lajos. Eu respondi que me chamava Luís, o que era o mesmo nome. Achei a coincidência engraçada. Ele pediu desculpa pela sua filosofia barata (disse assim) e eu ri-me, cumprimentei-o mais uma vez, esclareci que fora uma conversa encantadora, desejei-lhe sorte e que encontrasse a mulher que procurava.

“E, no final, quem sabe, encontramos sempre alguém”, disse o desconhecido, ao despedir-se, antes de desaparecer na praça cheia de turistas.

Ao vê-lo de costas, a afastar-se, pensei que era tão parecido comigo, ideia afinal um pouco insólita, pois eu não sei como ando, quando sou visto de costas.

publicado por Luís Naves às 19:53

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