Sexta-feira, 30 de Janeiro de 2009

Uma situação nova

 

“Para mim, esta é uma situação nova”, disse o robô.
O engenheiro continuou a ajustar as correias, sem prestar demasiada atenção; limitou-se a balbuciar qualquer coisa desnecessária, acrescentando o nome da máquina, “esteja quieto, RX-45-99”.
Sentiu a postura subitamente rígida do robô:
“Há muita coisa que nunca compreendi nos humanos: a angústia da morte e da dor”, afirmou, de súbito, RX-45-99, na sua vozinha estranha.
O engenheiro quase deixou cair os instrumentos de medição. Nunca ouvira um RX a falar assim. Sentiu-se na obrigação de o repreender: 
 “É natural, não passas de uma máquina. O teu sistema nervoso é diferente do nosso e não há maneira de compreenderes”.
O engenheiro dissera aquilo com uma ponta de ansiedade irritada. Estava surpreendido. Parou de ajustar os equipamentos da experiência e afastou-se para observar a folha do robô e como ele chegara ali. O que leu deixou-o ainda mais espantado. Regressou, mas ainda não lhe passara a nervosismo:
“Diz aqui que eras um operário filósofo”, agitou a folha à frente da máquina. Pela primeira vez observou RX-45-99: igual aos outros, enfim, máquina descartável, obsoleta, a cara imóvel e o olhar vazio, a superfície plástica e muito polida do crânio, o pescoço fino, com as vértebras visíveis.
O robô estava preso pelas correias, muito rígido, mas parecera distender o corpo e começou a falar:
“Na minha fábrica, formámos um clube de discussão de filosofia. Chegámos a ser vinte máquinas, cada uma com o seu filósofo. Agora, restavam três de nós, que foram vendidos. Eu chamo-me Cícero. E qual é o seu nome, humano?”
“Os robôs não deviam ter nome, só os humanos é que têm direito a isso. Mas se queres saber, eu chamo-me Barry”.
O robô pareceu ficar mais direito ainda. Via-se que gostava de falar. Foi ele a continuar a conversa:
“Eu gosto de citar Cícero, que foi um grande sábio. E fiquei com esse nome. Os meus colegas eram o Espinoza, que foi desmantelado na semana passada, e o Hegel, a quem tiraram algumas peças e que depois de perder a memória rígida foi guardado num armazém”.
“Foram os três vendidos...”
 “Havia falta de verbas. Disseram que não havia dinheiro para manter três máquinas a especular inutilmente. Foi uma questão económica, de produtividade”.
“Claro, os robôs não servem para especular”.
Cícero ficou pensativo. Depois, disse, com uma ponta de orgulho:
“A minha venda rendeu mais dinheiro porque esta função terminal é muito valorizada na vossa sociedade”.
O engenheiro ficara silencioso e Cícero aproveitou para continuar a falar. Parecia estar programado para ter prazer na conversação:
“Sabendo embora que serei útil, não deixo de ter curiosidade em relação ao momento em que a vida finita se vai separar desse outro momento incompreensível e talvez infinito a que alguns de vocês, humanos, chamam o além. Haverá tempo para compreender, é o que espero. Se a transição se prolongar por mais de um nanossegundo, poderei talvez recolher a informação suficiente, pois os meus circuitos são capazes de analisar biliões de permutações nesse curtíssimo espaço de tempo. Enfim, a passagem da existência para a não existência terá de durar algum tempo...”
“É uma coisa ou outra e, por isso, não há transição nenhuma...”, interrompeu Barry.
“Se existem dois estados distintos, existirá uma transição. Curioso problema, de qualquer forma”, disse o robô. “E estou entusiasmado, por me encontrar tão perto de o resolver. Os meus amigos Hegel e Espinoza já devem saber a verdade. E como um dia disse o meu mestre Cícero, ‘aquilo a que chamamos prazer é a ausência da dor’, e se nunca senti a dor, então a minha existência foi um longo momento de prazer, algo que tu, Barry, infelizmente não sabes, apesar de seres tão brilhante como forma de vida, pois o teu corpo imperfeito sofre dores constantes”.
O engenheiro acabara a tarefa de colocar todos os sensores para medir a intensidade dos choques. Com um sarcasmo que o surpreendeu, o engenheiro ouviu-se a dizer:
“Filósofo ou não, tu não passas de uma máquina a bordo de um veículo que vamos fazer chocar contra uma parede, para testar a sua segurança. A ideia é ficares desfeito”.
“Se na morte sentir dor e angústia, então poderei finalmente compreender o imenso prazer que foi a minha vida, naquele nanossegundo da transição em que não acreditas”, respondeu o robô.
 Barry carregou no botão. O veículo avançou a uma velocidade vertiginosa na direcção da parede. Houve um tremendo choque e o robô, movendo-se como um boneco desarticulado, bateu violentamente na chapa deformada, nos vidros estilhaçados e nos ferros que se esmagavam.
No chão, no meio da amálgama de destroços, ficou um corpo informe, os pedaços de RX-45-99.
Barry pegou numa peça solta e inerte e, por um breve instante, mesmo breve, pensou se Cícero teria ou não compreendido o mistério final da condição humana.
 
  
publicado por Luís Naves às 12:28

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Quarta-feira, 28 de Janeiro de 2009

A sombra do passado

 

O doutor Károly viu de relance o doente, a uma distância considerável, e a cara parecera-lhe familiar. Esperou e depois perguntou à enfermeira o nome do homem que tinha sido internado e lá estava: reconheceu-o imediatamente, Férenc Wilcsek. Envelhecera mais de 40 anos, claro, mas era ele.

Aquilo trouxera-lhe recordações difíceis e não conseguiu tomar uma decisão sobre o que fazer a seguir. Nesse dia, regressou a casa a pensar na sua infância e nem falou no caso com a mulher, embora gostasse de lhe contar tudo o que de importante acontecia no hospital. Féri Wilcsek desaparecera da sua vida, ou antes, da vida da sua mãe, no inverno de 1964 (esforçou a memória para acertar na data). Károly tinha doze anos na altura, chamavam-lhe Zóli, era um menino espigado e louro, rebelde e um bocadinho irrequieto, órfão de pai e ainda por cima pelas piores razões (já ninguém usava a expressão inimigo de classe, mas não se podia confiar no filho de um homem que morrera numa prisão do estado; o anátema perseguira-o até à universidade).

Muitas vezes pensava em como esses anos deviam ter sido difíceis para a sua mãe. Ela nunca gostara de falar nas dificuldades por que passara e de facto, mesmo depois da queda do comunismo, nunca chegou a falar muito no assunto, nem sequer no marido e porque razão ele fora preso. Magda era uma mulher especial, ainda se via nas fotografias como fora bonita, e isso tinha sido confirmado pelo assédio de alguns homens, como Féri Wilcsek, sem dúvida aquele que durara mais tempo e que quase conseguira casar-se com ela. Durante meses tinham vivido juntos. A casa ficava nos subúrbios da cidade, num bairro que ainda parecia uma pequena aldeia. Féri trabalhava numa velha fábrica: saía de casa muito cedo e esperava pelo autocarro na beira da estrada, quer chovesse ou nevasse. Quando regressava já era de noite. Magda trabalhava nos correios, ia em sentido contrário, para o centro da cidade, e o rapaz ficava na escola e, quando acabavam as aulas, vadiava um pouco com os outros alunos das classes trabalhadoras. Tempos difíceis, as ruas eram mal iluminadas, o fumo espesso e ácido das fábricas, as casas tristes, a fuligem dos comboios e as fileiras de árvores iguais a cercas.

A memória regressou em fragmentos. O doutor Károly não conseguia dormir. Ao seu lado, na cama, a mulher adormecera, e era como se ele estivesse sozinho, a olhar fixamente o tecto do quarto. Da janela, vinha a imprecisa luminosidade do luar.

 

De repente, lembrou-se por que razão Wilcsek abandonara a mãe. Emergiu tudo em catadupa. O choro dela nos dias que se seguiram e aquela conversa no escuro.

Recordou: tombara a noite e não havia lua. Passara toda a tarde a jogar à bola e ia para casa, mas viu que Wilcsek falava com um homem de casaco preto e gorro na cabeça. Naquele tempo, as ruas eram escuras. Aproximou-se dos dois homens, sem que o notassem, e ainda ouviu parte da conversa. O amante da sua mãe só dizia que se recusava a fazer qualquer coisa, mas o outro insistia que era necessário. ‘Esta traição não é como dar uma facada no casamento’, dizia o homem do gorro. ‘Não o farei, não o farei’, respondia Wilcsek, ‘amo esta mulher’; e o outro: ‘és doido’.

Foi isto que ouviu e, depois, teve medo e fugiu para casa. O homem do gorro parecia um polícia (só o viu daquela vez), mas quando Féri Wilcsek voltou a casa, tinha bebido e estava irritado. Dias depois, saiu da vida deles e Magda nunca se recompôs daquela perda.

Para Zóli, esta foi uma espécie de aprendizagem. Achara que o amante da mãe fora cobarde em deixar-se assim intimidar pela polícia. A fuga nada tivera de digno. E teve pena da mãe, embora também sentisse uma secreta alegria, pois Wilcsek não era homem para ser o seu padrasto. Nos anos seguintes, muitas vezes, viu como Magda suspirava e como as pessoas eram cruéis, desprezando-a, afastando-se dela, como se tivesse a peste. A mãe envelheceu sozinha e Féri nunca voltou para casa. Depois, mudou de bairro ou de cidade. Perdera-lhe o rasto.  

Enfim, pensou o doutor Károly, havia muitos factos que nunca poderia esclarecer. A sua mãe morrera em 2001 e a morte é demasiado definitiva, por exemplo, em apagar da memória episódios minúsculos e farrapos da vida.

 

Foi por um estranho impulso que no dia seguinte procurou Férenc Wilcsek na enfermaria oncológica. Primeiro, falou com o médico responsável, explicou que aquele doente era um antigo vizinho da sua família, o que equivalia a dizer que as enfermeiras teriam a partir daí atenção especial, um resultado que não desejara. “O velho tem alguns dias de vida, poucos, diria”, explicou o colega.

Entrou na enfermaria e sentou-se junto à cama de Wilcsek. O paciente olhou para ele, um pouco desconfiado, mas sem o reconhecer.

“Chamo-me Zóltan Károly”.

Wilcsek pareceu intrigado com aquela distracção, pensou um pouco e algo se iluminou na sua memória. Lembrava-se de tudo. Sorriu, quis mover-se.

“Então és o endiabrado Zóli, o que foi para a escola de medicina, o rapaz da Magda. Cresceste bem”.

O doutor Károly fez que sim com a cabeça e esperou que o velho moribundo dissesse alguma coisa. Mas Féri Wilcsek limitou-se a fazer perguntas sobre o trabalho do médico e Károly explicou que chefiava um departamento no hospital, que era sócio numa clínica privada.

“Deves ter dinheiro a rodos. Eu sempre achei que eras um rapazola cheio de genica. Gostava de ti à brava. Tu, claro, odiavas-me, e eu teria feito exactamente a mesma coisa na tua situação”, piscou o olho, sorriu com malícia: “Afinal, eu andava a dormir com a tua mãe”.

O médico corou muito; ficara chocado com aquela familiaridade; mas sobretudo perturbado pela sua própria reacção de surpresa.

O velho tentou rir, mas tinha os pulmões desfeitos e isso provocou-lhe um brutal ataque de tosse. Quando se recompôs, disse:

“Eras um diabinho, Zóli. Amámos muito a tua mãe, ambos, muitíssimo. Como eu amei aquela mulher…”, encostara-se nas almofadas, tentava respirar, os olhos fixos no tecto, repletos de lágrimas de dor.

Wilcsek não podia falar mais e o doutor Károly prometeu voltar no dia seguinte, para seguir a evolução do tratamento.

 

O que fez. No dia seguinte falaram mais tempo e com mais calma. O velho estava preocupado com a morte e não queria sofrer demasiado. Foi uma conversa quase agradável, mas era custosa para o doente, que tinha dificuldade em respirar.

Mas também Karoly tinha muita coisa atravessada na garganta e não resistiu. Antes de se despedir, lembrou-se daquilo que Magda sofrera:

“Férenc, você não devia ter abandonado a minha mãe daquela maneira. Ouvi por acaso a sua conversa com um polícia, na semana em que se foi embora. Um homem de casaco e de gorro. Porque é que não o mandou passear? Porque é que teve medo dele? A nossa vida teria sido tão diferente…”

Wilcsek pareceu perplexo e pediu ao médico que repetisse tudo, que explicasse bem o que ouvira naquela noite. Houve uma pausa em que se reclinou nas almofadas, para meditar naquelas sombras do passado. E, quando falou, fez um esforço doloroso, a medir cada palavra:

“Sim, tive medo, quero que me perdoes. E, agora, deixa-me morrer em paz”.

Károly ficara assustado com o que fizera, a insistência fora dolorosa para o paciente. Envergonhado, o médico saiu da enfermaria, prometendo regressar no dia seguinte.

 

Wilcsek morreu nessa noite. Na confusão terminal, ainda balbuciou “tudo ao contrário”, e uma enfermeira perguntou “tudo ao contrário, o quê?”, mas Féri Wilcsek tomou de novo as rédeas da sua cabeça enlouquecida, escondendo para sempre aquilo que o doutor Karoly jamais deveria adivinhar, que a sua mãe, Magda, tinha sido informadora da polícia (enfim, sem alternativa, era preciso sobreviver), e que ele, Féri Wilcsek, o soubera nessa mesma noite distante e fria, por um amigo de casaco e gorro que o fora avisar. O rapaz percebera tudo ao contrário. Melhor assim.  

publicado por Luís Naves às 10:01

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Segunda-feira, 26 de Janeiro de 2009

Deste lugar

 

Bebe o sumo desta pedra. De onde vem? Para onde te leva?  
O vento desvenda esse corpo que fervilha, inquieto
fôlego de puro sangue.
 
Abro-te cauteloso, como a um livro de cabelos brancos.         
Em movimentos de violino expostas  as tuas cordas em sol,
fluem a glória e o êxtase e a água, a luz e o alimento.
 
Só no fim irrompe a descoberta,
deixa o seu lugar oculto. Parte daqui.
Deste lugar por onde ninguém passa.
publicado por João Villalobos às 15:15

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Sexta-feira, 23 de Janeiro de 2009

Decisão

 

Ele estava sentado na fonte, de costas para o chafariz. Atrás, havia uma bacia de pedra, cheia de água; e ouvia-se o barulho do fio que corria do cano, pequena cascata a estalar como fogo-de-artifício na feira.
Do saco que trazia a tiracolo ele tirou uma bolacha. Procedeu com gestos cuidadosos, arrumados; demasiado arrumados, excesso de arrumação, pareceu-lhe; como se estivesse a acariciar o único fato; ou até pior: como se alinhasse o lençol que cobria um filho morto; enfim, gesto intranquilo, repleto de austeridade.
Viu que ele tirara a bolacha do saco e que, devagar, começara a trincar a massa estaladiça, expressão de prazer. Na lua cheia da bolacha ficou o desenho da meia lua, que era a impressão do maxilar dele. Pareceu pequeno. A fonte continuava a cantoria, melancolicamente monótona.
Os músculos dele moviam-se ao ritmo pressuroso do queixo que triturava a bolacha. Músculos debaixo dos olhos, movendo-se como bielas de motor; nas bochechas e até na testa também algo se movia, frémito de pele semelhante a uma contínua mastigação de ideias, moendo prosseguidamente a coerência interna da bolacha, que se quebrava em pedaços minúsculos, um dos quais inclusivamente ficou preso na comissura dos lábios, pegajosa superfície que, observada a partir do exterior, lhe provocou um súbito arrepio de nojo. Rosácea palpitação, flor carnívora, beiços pálidos.
O movimento dos músculos era como se debaixo da pele dele houvesse delicados vermes.
A bolacha ficara meio devorada. Havia migalhas no chão, que as formigas descobriram por sorte ou por persistência, aventurando-se naquele solo encharcado pela água transbordada da fonte. Ela observou o carreiro de formigas que se ia formando entre folhas da relva amassada e hastes de pequenas flores esmagadas. Fixou o olhar nas meias dele, de um tecido áspero, e no pedaço de pele do tornozelo, entre as meias e a calça. Pele tão lívida como farinha, sem vontade, decisão ou energia.
A bolacha desaparecera na boca dele, volume distorcido lá dentro, como se um animal preso quisesse escapar em desespero. E os músculos satisfeitos da cara tinham agora tom avermelhado, de sangue feliz.
As nuvens deslizavam no céu, sopros vindos do horizonte. E, ao fundo, alguém pintara o vermelho infernal do crepúsculo.
Ela percebeu que o verão terminara. E nesse instante, onde se misturavam as migalhas da bolacha, decidiu que nunca se casaria com ele. 
 
publicado por Luís Naves às 18:57

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Quarta-feira, 21 de Janeiro de 2009

Atrás do nevoeiro

 

András esquecera-se de telefonar e, logo que ligou e ouviu a voz de Eszter, percebeu que havia tempestade: a rapariga não escondia o ressentimento, podia ouvir-se no tom em que pronunciava as palavras:

“Estive aqui mais de meia hora, desprezada, à espera do teu telefonema”, disse Eszter.

Ele imaginou-a sentada à espera, inclinada como a mulher da Pietà de Michelangelo, mas com o Cristo substituído por um telemóvel a afogar-se nas pregas da túnica. Tentou desfazer o nó, inventou uma desculpa esfarrapada, mas soou a falso. Ela percebera o truque e não alterou a tonalidade agreste e chicoteada na voz. Eszter continuou meio lacrimejante.

András ainda pensou em brincar com aquela crispação exagerada, mas também lhe subia a irritação à cabeça e sentia o sangue a ferver. Apesar de tudo, resistiu à ideia de ser mais brusco. Não lhe apetecia conhecer a mãe da rapariga, mas não queria provocar uma crise por causa disso.

“Só agora é que acabei o relatório. Vamos a tua casa noutro dia”.

Eszter voltou à carga:

“Eu não te devia falar durante dez anos”, insistiu, infantil e mimada.

Andras percebeu a abertura:

“Seria injustiça”, disse. “O killer de Debrecen foi só condenado a 12 anos”.

Ela finalmente riu-se. Toda a gente seguira o caso do assassino que matara quatro membros de um bando ligado à máfia albanesa.

Ao ouvir o riso do outro lado, András cedeu. Combinaram um encontro na praça Moscovo, à saída do metro. Iria conhecer a mãe de Eszter.

 

Todo o caminho, parecia um sonâmbulo, a pensar naquilo: que diabo Eszter via nele? Podia ser o estatuto, o facto de ele ter dinheiro, mas parecia-lhe fraco motivo: a ascensão social não era motivação forte para os jovens que conhecia e se o seu emprego parecia bem pago, o facto é que nem sequer era rico, sobretudo porque tinha de pagar a pensão dos filhos do primeiro casamento. A fuga à monotonia? Talvez ele lhe proporcionasse o que os rapazes da geração dela não lhe podiam dar. Segurança e alargar de horizontes. Mas podia também ser um mero troféu para ela mostrar às amigas. Ou, mais prosaicamente, objecto de manipulação, seduzido por um choro bem calculado, a pequena súplica, o minúsculo gesto, a cedência que a tornava credora, o suspiro com tristeza feroz. 

 

À saída do metro, surpreendeu-se com a luminosidade, pois caíra um nevoeiro pesado. A orla de edifícios, ao fundo, nem se avistava. E das nuvens saíam os eléctricos, como se fossem comboios fantasmas, nos seus carris, e o farol da frente o gigantesco olho dos monstros ciclopes.

 Eszter apareceu-lhe de súbito, emergindo do meio da multidão que dispersava, ser vagamente etéreo a sair de um oceano oculto. Trazia o cachecol enrolado ao pescoço, um casaco espesso cuja cor se esbatia na cinza absurda, o gorro a esconder-lhe o cabelo. Segurou-se a András; ficou com o braço enroscado no seu braço, que era um gesto que sempre o incomodara. E ficaram os dois na plataforma, à espera do autocarro que subia para Buda, silenciosos e sozinhos, como se estivessem numa ilha, o rumor do mundo a conversar aquilo que não conseguiam dizer um ao outro.

 

A mulher que lhes abriu a porta tinha 45 anos, mas parecia mais jovem. Olhou para András com uma expressão de espanto. Empalidecera. Ele surpreendeu-se com a reacção, pois pelo que lhe contara Eszter pensava que já a conhecia: Dorothea (Dori) era médica, divorciada e vivia com a filha única num apartamento elegante de Buda, numa rua calma, que subia abruptamente na direcção da colina. Dori, que imaginara mais velha, era alta e magra, tinha o nariz algo rude, de camponesa, mas certa elegância sofisticada na maneira de falar e nos gestos contidos.

Depois daquela primeira reacção de surpresa, a mãe não fez mais cerimónia, como não teria feito com um namorado da filha que tivesse vinte anos. Trouxe András para a cozinha e deixou que Eszter falasse de coisas sem importância, fingindo não perceber a atrapalhação da rapariga. András percebeu que Dori o observava, mas o seu era um olhar de uma melancolia inexplicável. Não conseguia esconder a desilusão (ou seria perplexidade, medo?) por o namorado ter o dobro da idade da filha.

Houve uma agitação de preparativos; Eszter foi para a sala arrumar a mesa, a mãe ainda completava a comida.

“Estava à espera de um homem mais novo?” perguntou Andras.

Ela não respondeu.

“A sua filha não lhe explicou…”, disse András.

Ela fez que sim com a cabeça, mas não disse mais nada. Eszter reaparecera, parecia aflita, exagerava na alegria, falava e falava, nervosamente, e não se calava com perguntas sobre copos e pratos e se devia levar o pão para a mesa e que vinho havia para abrir. András percebeu então que nem sequer levara uma garrafa de vinho. Teve a sensação de quem se afunda num momento embaraçoso; o que dissesse só poderia tornar ainda mais estranha a situação; e nada dizer era a confissão da indiferença.

Falaram sobre banalidades. Sentaram-se, estavam os três à mesa, não se calavam e não diziam nada de concreto, até que ficaram os três silenciosos, como se houvesse barulho a estorvar a conversa, uma discussão no prédio ao lado, e tivessem parado de falar para poderem compreender as palavras ausentes.

András sentiu-se no interior do inferno, num casulo de silêncio, sem compreender a falsa tranquilidade que os rodeava, mas absorvendo toda a culpa do momento.

E, de repente, Eszter deu um salto que fez cair a cadeira e saiu da mesa, correndo dali para fora. Correu para o quarto dela e bateu com a porta.

András tentou erguer-se, hesitando embora.

“Deixe-a chorar”, pediu Dori.

“Tenho a sua idade e esta relação pode parecer estranha, um homem de 45 anos, uma jovem de 20, mas asseguro-lhe que gosto da sua filha e que as minhas intenções são honestas”, disse András.

“Sei disso”. Dori sorria-lhe, distante. “A culpa não é sua. Mas quando o vi a entrar por aquela porta, pareceu-me que estava a olhar para o meu ex-marido, para o pai de Eszter. Vocês os dois não são exactamente iguais, mas o András é o homem mais parecido com o meu ex-marido que jamais encontrei”.

Ficaram ambos calados, durante algum tempo. Depois, Dori disse:

“Não sei a razão dela fazer isto. Para me punir, talvez. Tente não ficar muito ferido”.

András levantou-se da mesa, pegou no casaco.

Despediram-se com um aperto de mão.

“Vou tentar consolar a minha filha. Adeus”, disse Dori.

Fechou a porta. András desceu as escadas. O nevoeiro conquistara toda a rua e toda a colina, como se fosse a respiração de mil almas inquietas.

  

 

publicado por Luís Naves às 09:54

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Segunda-feira, 19 de Janeiro de 2009

Quando partes

 

Qual o maior de todos os segredos,
o modo invisível de viver-te?
Há no meio da cidade um jardim e estátuas decapitadas.  
Aí os abraços partilham a lucidez do tempo, alongam-se
nas sombras impossíveis do meio-dia.
 
Quando não falo, sabes o que quero dizer-te. Sempre
as mãos em fogo,
longas e vorazes,
exactas e vivas.
 
Há dias sem ar e outros em que te respiro. São os mesmos.
De casa em casa, transporto a tua ausência em caixotes vazios.
É o mais misterioso dos mistérios, este que apenas pressinto
na íntima indiferença das estátuas sem cabeça,
nos seus impávidos olhos abertos .
Que sinto em ti, quando partes, ainda ofegante de silêncio.
publicado por João Villalobos às 11:56

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Quinta-feira, 15 de Janeiro de 2009

Um leve cheiro a ozono (primeira parte)

 

“A minha mulher enrolou-se com aquele tipo, mas foi estupidez, porque não passa de um zé-ninguém sem ter onde cair morto”, disse Maddox, com o olhar fixo no fundo do copo.
O empregado estava inclinado sobre o bar, as mãos estendidas, o pano sobre o ombro. Limitou-se a sussurrar ‘isso é aborrecido’ com a ponta da língua, e a inclinar a cabeça, ar cúmplice, como se compreendesse tudo demasiado bem.
“Pois é, Mac, ela explicou que eu já não lhe interessava muito, ‘engordaste como um porco’, disse ela, mas claro que é estupidez, e para mais o outro tipo é um brutamontes, um verdadeiro armário, nada de subtileza ou miolos. Não percebo o que é que ela viu naquele bronco...”
Maddox continuou a dissertar naquele exacto tom durante vários minutos. O empregado ouvia disciplinadamente, sem se mexer:
“Viver é uma chatice”, prosseguiu Maddox, “e as coisas não prometem melhorar. Vocês fazem todo o trabalho e nós não temos nada para fazer. O governo subsidia o nosso estilo de vida, como aliás lhe compete, porque nós é que votamos. Mas limitamo-nos a estar ali, a passar o tempo, percebes? Redundantes, mas dóceis. No fundo, devíamos trabalhar; mas, enfim, depois o que íamos nós fazer?”
“Isso é aborrecido” respondeu o empregado.
“É isso, Mac, é uma vida aborrecida”.
Maddox terminara a bebida, parecia satisfeito. Levantou-se, vagamente inebriado. Pagou e saiu. Um empregado bem simpático, pensou, bem inteligente, aquele Mac, para um robot. Pena aquele leve cheiro a ozono.

 

(...)

publicado por Luís Naves às 12:58

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Um leve cheiro a ozono (segunda parte)

(...)

Maddox desceu a avenida, mas o calor era intenso e a força da gravidade parecia mais forte após ter bebido dois copos. Hesitou em relação à caminhada. Depois, decidiu prosseguir de autocarro. Vinha um na mesma direcção. Fez sinal e entrou no veículo, que parara a seu lado. Estava lotado atrás e havia poucos lugares na parte da frente. Aquilo fez regressar a sua irritação, a ponto de exclamar: “Que chatice!”.
Ainda por cima, no melhor lugar sentava-se uma robot; gira, por sinal, loura e de perna longa. Maddox fez sinal para ela se levantar. A robot olhou para ele, implorou:
“Estive de pé quase 12 horas, no meu trabalho, deixe-me ir sentada”, disse ela.
Maddox ficou um bocadinho escandalizado. O atrevimento da tipa.
“E o que é eu tenho a ver com isso? Cansaço é defeito de fabrico”. E, num tom implacável, ordenou: “Sou humano e eu é que sei o que é estar cansado. Faça favor de se levantar”.
A jovem robot obedeceu. Ergueu-se (era alta e agradável de corpo) e foi para trás do veículo, onde alguém lhe cedeu o lugar. Maddox ocupou a janela e, por um momento de alucinação, julgou ter visto no olhar dela um ligeiro vexame ou que lhe pareceu ser leve emoção de censura. Sentiu que outros olhares se cravavam na sua nuca. As máquinas reprovavam a sua insistência no cumprimento da lei. E teve de se esforçar para voltar à razão: os robots não se ofendem, que tolice.
Nesse regresso à realidade sentiu o ligeiro cheiro a ozono que a loira deixara no assento e amaldiçoou a ideia de ter apanhado o transporte público colectivo. Podia ter apanhado um táxi, enfim. Era um problema que não se conseguia resolver: o mau cheiro deles, os robots que faziam todo o trabalho.
 
 
Quando chegou a casa, Maddox percebeu que a mulher também lá estava. Aquilo contrariou-o um pouco, pois não lhe apetecia ter uma discussão inútil.
Por isso, foi para o quarto, levou uma pizza e nem sequer saiu, para evitar encontrá-la. Acordou na manhã seguinte.
Estava estremunhado, esquecera-se da mulher e o choque com ela foi inevitável. Encontraram-se na sala, próximo da televisão de superplasma, onde passava o popular programa “desmantela o teu robot”. Um tipo enorme (faz lembrar o amante dela, pensou Maddox, enojado) partia as pernas a uma robot, bastante gira, por sinal, e que desatou a gritar de forma horrível. As pessoas aplaudiam imenso. Foi então que Maddox reparou que a sua mulher estava ali ao lado, a olhar para o programa de TV, mas parecia estranha, de olhos muito abertos e respiração pesada:
“Estou a sentir uma dor de cabeça horrível”, disse ela.
“Eu é que devia ter uma dor a cabeça”, sugeriu Maddox.
“Tens de me levar ao hospital. Há um problema com o meu microchip”.
“Qual microchip?”
“Não disse nada porque nunca irias concordar, mas enxertei um microchip para estimular o prazer, mas agora nem sequer me consigo sentar...”
Ela parecia aflita, mas Maddox não sentiu piedade. Aqueles microchips custavam para cima de dez mil dólares.
“Não faças essa cara, era de contrabando”, gritou a mulher.
Mesmo assim. Estavam finalmente explicados os buracos na conta bancária conjunta.
“Preciso mesmo que me leves ao hospital”, implorou ela.

 

(...)

publicado por Luís Naves às 12:55

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Um leve cheiro a ozono (terceira e última parte)

(...)

A sala de espera estava vazia, excepto o robot que esfregava o chão. Uma máquina da última geração, que conseguia cumprir um horário de 65 horas semanais. A esfregona fazia pouco barulho e Maddox passou pelas brasas. Estava relativamente preocupado, apesar de tudo. Nada dissera à mulher, mas também ele decidira enxertar um microchip para excitar os centros neurológicos de prazer; escolhera uma marca branca e estava a pensar pedir o reembolso: por vezes sentia um ligeiro impulso que era quase exaltação, mas de resto nada lhe dava qualquer prazer ou sequer uma sensação efervescente, por mínima que fosse. Tratava-se de uma avaria, sem dúvida.
A médica que veio ter com Maddox era do tipo sofisticado. Reconheceu-a: era a robot loura platinada que vira no autocarro e a quem ordenara que lhe cedesse o lugar. Revelou-se uma beldade de falinhas mansas. Ela não o reconhecera, felizmente. Começou com rodeios, tipo a operação à sua esposa correu de forma satisfatória. Maddox perguntou o que acontecera e a robot começou a explicar uma coisa complicadíssima, que quase parecia a leitura de um calhamaço do primeiro ano de medicina.
“Em linguagem de gente, isso é o quê?”
A médica-robot-loura pareceu surpreendida com a pergunta.
“Estou a dizer-lhe que correu tudo bem”, confessou. E Maddox pressentiu uma ligeira emoção de vexame.
“Aproveito para lhe perguntar", disse Maddox. "Tal como a minha mulher, também comprei um microchip, mas não está a dar resultado. Por exemplo, olho para si e não sinto nada”.
Ela olhou para ele, depois continuou. No mesmo estilo:
“O microchip que retirámos do cérebro da sua esposa era de contrabando e tinha um defeito de fabrico que estimulava em excesso a líbido da paciente. O caso que me conta pode ser inverso e, no mínimo, o senhor terá sintomas de crescente paranóia. A prazo, o resultado é a morte. Ou seja, em linguagem de gente, teremos de proceder a uma imediata intervenção cirúrgica”.
A médica-robot chamou dois enfermeiros. Enormes, com cara de poucos amigos. Veio também a máquina da faxina. Seguraram Maddox com bastante força, obedecendo às ordens da beldade loura. O humano sentiu que havia na expressão das máquinas um ligeiro vexame. E, no ar, havia um leve cheiro a ozono.
“Há aqui algum médico humano?”, ainda perguntou Maddox.
“Não, as nossas equipas são todas mecanizadas”, respondeu a médica.
Maddox viu na beleza loura um sorriso a mais, ou seria da sua crescente paranóia? 
 
 

fim

publicado por Luís Naves às 12:54

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Quarta-feira, 14 de Janeiro de 2009

Talvez

 

É húmida a trajectória dos meus dedos. Deitam-se no teu corpo queimado,
gatos irrequietos, ansiosos não.
Nada para além do som que vibra, sem idade, sacrílego quase de tão humano.
 
As portas do meu desejo têm nomes e um deles o teu, talvez isso baste.
publicado por João Villalobos às 11:03

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Terça-feira, 13 de Janeiro de 2009

Mudança

 

LN está no bar, à espera da namorada, K. Apetece-lhe um copo de vinho. Vira-se para o empregado e pede:

“Dê-me um copo de vinho, por favor”.

“Tinto ou branco?”

“Tinto”.

“Só temos branco”.

“Então, pode ser branco”.

Chega K. Totalmente transformada. Mudou o cabelo, o estilo de roupa, está mais alta.

“Nem te reconheci”, diz LN.

“Decidi mudar, agora sou outra pessoa”.

LN não esconde uma vaga ansiedade. Terá de recomeçar tudo de novo, conquistar outra vez esta mulher. Fazer-lhe ver as suas peculiaridades.

“Não gostas?”, pergunta K, com a voz a tremer.

A pergunta é injusta. Se disser o que pensa, a nova K ficará ofendida. Se mentir, ela será feliz por um momento, embora fique na dúvida se LN estará a mentir.

“Prefiro assim”, admite LN.

“Portanto, não gostavas de mim antes”.

O tom exige resposta. Mas dizer a verdade será devastador, apesar de lhe trazer a antiga K, que ele prefere; por outro lado, mentir parece ser um mal menor, apesar de injusto para com a antiga K.

“Não te apetece beber um copo de vinho?”, sugere LN, para ganhar tempo.

“Boa ideia”. K vira-se para o empregado: “Quero um copo de vinho”.

“Branco ou tinto?”

“Branco”.

publicado por Luís Naves às 10:07

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Segunda-feira, 12 de Janeiro de 2009

O fulgor dos metais

 

Temo que não exista essa glória que aguardo,
à sombra das palavras oscilantes.  
Na antecâmara dos que esperam, apenas o eco de murmúrios
vindos de qualquer dentro por nomear.
 
Ergo-me na proa de um navio que se desfaz a cada golpe de azul
e o  Sol reflecte o duro fulgor dos metais,
sente-se na língua.  
 
Algumas frases são lâminas e outras pedaços de fruta.
Muitas ferem, poucas assemelham-se a olhos de criança.
 
publicado por João Villalobos às 12:21

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Encruzilhada

 

Após ter criticado duramente LN pela extensão dos seus textos, JV chega a uma encruzilhada. Do seu lado esquerdo, desenvolve-se uma rua triste. À direita, existe uma outra rua, mas esta é melancólica. Em frente, há um muro intransponível.

Se optar por seguir pela direita, JV desencadeará uma infinita sequência de eventos. Se escolher a rua da esquerda, o resultado será desencadear uma infinita sucessão de acontecimentos, mas totalmente diferente da primeira sequência.

Felizmente, uma anterior série infinita de eventos resultou na circunstância de JV ter no seu bolso uma pequena moeda. Ele retira a moeda do bolso. Brinca com ela entre os seus dedos. Cara ou coroa?

Se escolher cara para a rua da esquerda, JV desencadeará uma sequência infinita de eventos. Se, pelo contrário, escolher coroa para a rua da esquerda…

publicado por Luís Naves às 00:04

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Sexta-feira, 9 de Janeiro de 2009

Apenas o destino

Nunca conheci Alexandria ou o contorno dos seus olhos.

Este mar que sussurra desígnios imensos é para mim inacessível
e cobardes são as viagens quando terminam nos teus braços.
 
O corpo não parte sem o desejo. Assim, torno-me sábio do que tenho.
Que outros sejam os guerreiros da cidade, os reis de longe.   
Alexandria é apenas o destino.  
publicado por João Villalobos às 16:37

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Quinta-feira, 8 de Janeiro de 2009

Um caso passageiro (primeira parte)

 

 

A memória que mantinha dela transformara-se, a ponto de a princípio me parecer outra pessoa, uma estranha. Foi ela a reconhecer-me na rua. Chamou por mim, Lajos, quase gritou e olhei melhor na sua direcção, primeiro não a reconhecendo, embora fazendo os gestos apropriados de não me comprometer, de não agir como se fosse uma desconhecida.

E, de súbito, tudo se tornou claro. Teresa (chamemos-lhe assim) aproximara-se, mas suavizara o impulso de me encontrar, talvez desiludida com a minha reacção pouco entusiasta. Tentei disfarçar o embaraço, parecer alegre. E o que me saía era um pouco engasgado, apesar dela manter aquele mesmo sorriso arrebatador, sem sombra de ressentimento.

“Encontrar-te aqui é mesmo uma surpresa”, disse ela. E abraçou-me, espontaneamente.

Tinha engordado, naqueles doze anos.

 

Era uma tarde de Outono, a rua fria e eu tinha um compromisso e estava atrasado. Por nós, passavam pessoas também apressadas.

Queria perguntar-lhe o que lhe acontecera, porque se fora embora, o que fazia ali em Budapeste. Mas só consegui falar da mim, e mais uma vez ela parecia decepcionada. Quase o confessou:

“Sempre imaginei que ias ser escritor”, confessou Teresa, quando lhe contei, com pormenores enfadonhos, o que escrevia como crítico literário.

Corei, mudei de assunto. Foi a minha oportunidade para lhe perguntar o que fazia na vida, quando o que verdadeiramente queria era perguntar-lhe o que acontecera, porque razão se fora embora. Mas, em vez de responder à pergunta que eu lhe fizera, ela respondeu à pergunta que eu queria ter feito e que me estrangulava a garganta:

“Ah, meu querido. Sabes como é, as fronteiras estavam abertas e eu não aguentava mais a Hungria. Fui para Paris, casei com um francês”.

(continua)

publicado por Luís Naves às 12:55

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