O empregado de mesa foi brusco comigo, a fingir que não falava línguas ou que não percebera qualquer coisa, o que atraiu a atenção de um homem que se sentava no café, na mesa ao lado da minha: não diria que fosse um obeso, mas tinha peso a mais, cabelo ligeiramente grisalho cortado curto e um olhar muito azul atrás dos óculos de modelo antiquado.
Sorriu para mim, por solidariedade, a propósito do empregado malcriado, como se pedisse desculpa pela parvoíce ou inabilidade do outro. Eu também lhe sorri de volta. Era um incentivo para ele meter conversa comigo, mas por mútua timidez houve um impasse e podíamos ter ficado ambos em silêncio. O desconhecido sabia que eu era estrangeiro, pensei que talvez não falasse línguas, por isso tentei a sorte no meu húngaro precário. Julguei que sabia completar a frase, antes de me ter lançado nela:
“Não ficou satisfeito…”. Eu queria dizer com a gorjeta, mas faltou-me a memória. Fiquei com ar estúpido, a olhar para a mão vazia, na esperança de encontrar as palavras em falta escritas na minha pele.
“Este exemplo não define o meu país”, salvou-me o desconhecido, que falara do empregado num francês rugoso e bárbaro, levemente carregado nas primeiras sílabas das palavras.
“Vocês são terríveis”, respondi, ligeiramente vexado por ele se exprimir em francês. “Quando alguém fala mal o húngaro, respondem noutra língua, para o impedirem de dizer asneiras”.
Ele riu-se:
“Tem razão. É a nossa resistência, suponho”.
Podíamos ter ficado por ali, uma conversa sem história. Mas, para mim, aquele desconhecido tornara-se interessante. Tínhamos escolhido a língua francesa. Perguntei-lhe se era da cidade e ele disse que não, que estava de passagem, que viera à procura de uma pessoa:
“E encontrou-a?”, perguntei, indiscreto.
Deitou-me um olhar estranho, como se parasse para pensar uma infinidade de coisas. Depois, moveu a cabeça, numa negação silenciosa; sorriu com uma tristeza que me impressionou.
“Não a encontrei”, disse ele.
Hesitei. Não podia perguntar-lhe sobre o que adivinhava atrás daquela frase. Uma mulher, talvez, uma paixão antiga. Qualquer coisa de nostálgico, de vagamente inquietante. Fiz um gesto solene para a minha mesa, convidei-o a sentar-se comigo, perguntei se queria acompanhar-me numa bebida. Ele recusou modestamente, com boa educação. Depois, começou a contar a sua história, antes que eu lho pedisse:
“Saí desta cidade há cinco anos, sem olhar para trás. Fui para a capital e reconstruí a minha vida. Na altura, ela disse que iria ter comigo, mas isso nunca aconteceu. Vejo agora que era apenas uma promessa caridosa, em que acreditei de forma ingénua. Entretanto, perdi-lhe o rasto e com o tempo fui percebendo que a minha existência era cada vez mais vazia. Eu sabia que o passado nunca se revive, mas arrisquei tentar reencontrá-la. Ela morava com a mãe num bairro da periferia desta cidade, procurei-as, mas já não moram lá e nenhum dos vizinhos sabe para onde foram; ela trabalhava nos armazéns centrais; veja, ficam atrás daquele edifício; ali, o de cor ocre; mas já não trabalha nos armazéns centrais e ninguém sabe para onde foi. Uma pessoa que a conhecia bem afirmou que talvez tenha regressado à terra dela, mas não tinha nenhuma ideia onde era essa aldeia ou vila. Enfim, procurei-a durante três dias e, ao fim de cada um desses dias, voltava ao quarto de hotel e sentia-me sozinho no mundo. E, ao fim do terceiro dia, algumas horas antes de me sentar aqui, neste mesmo café onde me sento agora, percebi finalmente que nunca a conhecera deveras. Nada sabia sobre aquela mulher, a ponto de compreender subitamente que ela nunca existira, excepto na minha imaginação, quero dizer, que preenche o que me falta na memória. Não tenho qualquer prova da sua existência: uma fotografia, uma lembrança que não seja imprecisa, um rasto, a certeza de que estou a falar com alguém que a conheceu mesmo a ela e não a outra mulher qualquer, apenas parecida. É como esta nossa conversa, que vamos lembrar cada um à sua maneira, a ponto de terem sido duas conversas paralelas e não uma apenas. E assim foi com esta mulher que procurei, que nunca encontrei de facto e portanto nunca perdi; a parte ínfima de uma ilusão na minha vida; uma forma em mudança, que vou esquecendo devagar, como o esquecerei a si talvez, também devagar”.
“Mas um grande amor como o seu é inesquecível por natureza, nunca se perde verdadeiramente…”, afirmei.
“Era demasiado frágil, percebe? Queria tanto acreditar que alterei a própria realidade, criando realidades paralelas. Não será o mundo que nos rodeia isso mesmo? Pontos de vista em contacto, momentos que se limitam a acontecer ao mesmo tempo? Connosco tudo era demasiado intenso, visto numa lupa imensa, que permitia chegar às próprias estrelas. Em cada gesto dela, em cada sopro dela, em cada palavra dela, eu extinguia-me em diferentes fragmentos de mim mesmo”.
“Assim será o amor autêntico. Felizes os que vivem um de verdade”
“Felizes ou infelizes, pouca distância existe entre os dois. Esqueça o que leu nos poetas. A memória é sobretudo um lugar fúnebre e as paixões são cemitérios de sonhos: pairam ali os odores da traição e do desencontro. Ao sair da vida dela julgava estar a protegê-la, mas era uma desistência. Tive medo daquele excesso que me sufocava. Foi uma fuga e uma libertação e encontrá-la agora seria um absurdo”.
O desconhecido ficou algum tempo em silêncio. Depois, ergueu-se lentamente. Disse-me que se chamava Lajos. Eu respondi que me chamava Luís, o que era o mesmo nome. Achei a coincidência engraçada. Ele pediu desculpa pela sua filosofia barata (disse assim) e eu ri-me, cumprimentei-o mais uma vez, esclareci que fora uma conversa encantadora, desejei-lhe sorte e que encontrasse a mulher que procurava.
“E, no final, quem sabe, encontramos sempre alguém”, disse o desconhecido, ao despedir-se, antes de desaparecer na praça cheia de turistas.
Ao vê-lo de costas, a afastar-se, pensei que era tão parecido comigo, ideia afinal um pouco insólita, pois eu não sei como ando, quando sou visto de costas.
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