Sábado, 4 de Setembro de 2010

Penúltima canção

Às vezes bem deixo andar o Tempo

mas ele não sai do lugar.

Fica a girar nas linhas da mão,

à espera de acreditar.

 

Às vezes o Tempo é vazio,

espreita e aguarda mas nunca se deita,

é uma guitarra sem a sua janela,

estrela apagada em lugar de uma vela.

 

Se pudesse olhar para ontem e ser amanhã

veria os teus dedos em mim.

 

Se pudesse acordar de olhos fechados

para tudo o que teve fim.

 

Às vezes anda demais, anda depressa

o Tempo que faz a sua promessa,

leva o teu nome com ele a fugir

corre e corre sem nunca sorrir.

 

Às vezes o Tempo devia calar-se

em silêncio estender o seu cobertor.

O Sol sobre a cama e tu em pijama

e eu entretido com o teu sabor.

 

publicado por João Villalobos às 18:18

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Sábado, 28 de Agosto de 2010

Cena de ciúmes

Uma sombra de cinza pairava sobre aquela parte da cidade, como se houvesse ali uma maldição particular que enchia os corações de escuridão.
Desci da carruagem a sentir nojo pela rua enlameada, a olhar a medo as lúgubres fachadas. O cocheiro largou para o centro, a chicotear os cavalos e fiquei sozinho. Fui tocado ao de leve pelo frio cortante do vento, num arrepio.
Encontrei os polícias numa rua interior do bairro operário. Estavam dentro de um prédio de cinco andares, ruidoso e sobrelotado. Os curiosos indicaram-me o caminho. Julgaram que eu era também polícia e alguns chegaram a tirar os barretes da cabeça. Fui subindo, bastava avançar para o ponto onde houvesse mais gente com ar pasmado. Segui por corredores esconsos e cheguei ao buraco onde estavam os detectives e o médico legista. E os dois corpos das vítimas.
A mulher estava meio despida, inerte, o cabelo louro e comprido a cobrir-lhe a cabeça como um véu. O braço esquerdo subia, elegante, para o planalto da cama e ali jazia, muito iluminado.O amante estava encostado à parede, grotesco, a cara desfeita pelo tiro e os braços abertos, numa incredulidade.
Aproximei-me do detective que conhecia melhor, Braskó, e saudei-o.
“Vocês são piores que as piranhas”, disse Braskó, “cheiram o sangue à distância”.
“Sabes como uma cena de ciúmes atrai sempre a atenção dos leitores. E um crime suburbano vende jornais”.
O detective largou uma sonora gargalhada, que destoava daquele espectáculo. E disse:
“A burguesia não tem emenda, sempre fascinada pelas misérias dos seus operários”.
“Como é que se chamavam as duas vítimas?”, perguntei, a tentar ignorar o comentário dele.
“Ele era sapateiro, um tal Imre Mozgó. Nasceu em 1881, portanto, tinha 29 anos”.
“Mozgó [mexido*]? Brincas?”
“Assim mesmo. Ela era Dora Szábo, 20 anos. Operária. Linda de morrer”.
Estavam a virar o corpo e tinha sido de facto uma mulher lindíssima. Mantinha uma expressão angelical no rosto. Parecia simplesmente adormecida.
Tentei de imediato confirmar a história que se contava:
“O marido surpreendeu-a com o amante e matou os dois a tiro. Um crime de paixão. Julgamento sensacional e sai em liberdade. Já o prenderam?”
“A história não é bem assim”, disse Braskó. “Ela não era casada”.
“Mas o assassino matou por ciúmes?”
“Ciúmes, maldade, sei lá...”
“E prenderam-no?”
Braskó segredou-me onde o poderia encontrar. O suspeito ainda não seguira para a sede da polícia, no centro da cidade. E eu pensei que ali era o fim do mundo: pessoas que não se casavam, que se traíam como animais. O preso teria na mesma a compreensão do público e da justiça.

 

O assassino estava sentado, muito pálido. Parecia alguém que saíra de um sonho mau. Dava dó ver aquele ser esfrangalhado, desatento das perguntas.

Fora fácil convencer o polícia a deixar-me falar dois minutos com János Toth. A história já começara a correr em toda Budapeste, em forma de boatos, e nestes casos havia sempre uma onda de simpatia pelo marido enganado que lavara com sangue a sua honra. Expliquei ao sargento de guarda que um testemunho em primeira mão serviria para tranquilizar a opinião pública. E dei-lhe uma pequena gorjeta, para o convencer. Ainda bem que chegara cedo ao local do crime. Tinha o exclusivo.
Mas quando fiquei em frente a Toth tornou-se de repente mais difícil raciocinar. Pensei em perguntar-lhe primeiro porque matara os dois amantes. Podia ter morto apenas o sapateiro e poupado a mulher. E lembrei-me do que dissera Braskó, ao falar da maldade. Toth tinha um olhar mesquinho.
“Avisei que os matava”, disse Toth, sem que eu fizesse alguma pergunta.
“E como os matou?”
Ele contou toda a cena. Vira-os chegar de mãos dadas. Era noite. Eles subiram para o quarto e ele sentira uma brusca vontade de matar. Esperou um pouco. Subiu também. Arrombou a porta com um pontapé. A porta cedeu de forma mais fácil do que pensara. O sapateiro levantara-se e levara com um tiro na cara. Não se mexeu mais. E ela pediu-lhe misericórdia, mas Toth disparou.
“Actuei num impulso incontrolável”, esclareceu Toth.
“Compreendo”, disse eu. “Lavou a sua honra”.
“A Dora era minha ou de ninguém”.
“Quando a conheceu?”
“Há um ano”.
“Eram casados?”
“Não acredito em igrejas”.
“E viviam juntos?”
“Ela era minha. Avisei o Mozgó para se afastar”.
Foi neste ponto que os polícias me interromperam. Não consegui fazer mais nenhuma pergunta. Chegara o carro celular para levar o preso. Toth ainda sorriu para mim, com ar sinistro, e pensei que o assassino se iria salvar no tribunal. Crime de paixão, impulso incontrolável, um caso de honra. E, apesar de tudo, havia aquele ar angelical da morta, que tornava impossível o relato. Só me ocorreu esta ideia quando já levavam Toth e fiquei tão irritado com a minha incompetência que nem me lembro de quem me levou até à irmã de Dora.

 

Georgina era uma mulher a rondar 30 anos e que engordara precocemente. A casa, enfim, o miserável quarto onde vivia mal dava para tantas crianças. Contei pelo menos quatro filhos. Apesar da pobreza, havia certa dignidade, abalada por uma perda sentida.
Ao ver os olhos congestionados do choro, senti pudor em perguntar àquela mulher porque razão a sua irmã atraiçoara o marido. Enfim, não o marido legal, mas o marido de facto. Fiz uma pergunta redonda, que a fez falar:
“A Dora era uma mulher honesta, senhor jornalista. Era uma mulher alegre, bondosa e trabalhadora. E agora morreu, sem fazer mal a ninguém”.
“Que idade tinha a sua irmã?”
“Tinha só 20 anos”.
“E o que fazia?”
“Trabalhava na fábrica de fiação. É onde trabalha toda a gente do bairro. Uma vida dura, a nossa. Às vezes não há trabalho. Não temos comida para dar às crianças”.
“E a senhora é casada?”, perguntei, porque não vira um homem na casa.
“Sou viúva, senhor. E a minha irmã era o meu amparo. Ajudara-me a tratar dos meus filhos, todos órfãos coitadinhos. E o homem dela, o Mozgás, também me ajudava”.
“Mas, enfim, o homem dela não era o Mozgó, era o Toth, aquele que a matou”.
Georgina ficara paralisada, a olhar para mim. Disse que havia um equívoco. E contou, aos soluços, a sua versão:
“A Dora conheceu o Toth há um ano. Ele prometeu-lhe casamento, disse que tinha dinheiro, mas era um inútil, que vivia do roubo. Os dois viveram juntos algumas semanas, mas ele batia-lhe. Foi pancada de criar bicho, senhor jornalista. Uma noite, a minha irmã apareceu aqui toda amassada, com um braço partido que a impediu de trabalhar durante três meses. Nunca mais voltou para o Toth e ele fazia-nos ameaças. Chegou a ameaçar que nos matava a todos, incluindo os meus filhos, se ela não regressasse. E a Dora manteve-se firme. Um dia, quando ia para a fábrica, ainda estava escuro, a minha irmã deparou com o Toth, que a esperava num descampado. Começou logo a bater-lhe e quase a matava. Mas correram alguns operários e o cobarde fugiu. A polícia nunca nos defendeu. Servimos só para trabalhar e ninguém nos protege. O que será dos meus filhos, agora? O que será de mim?”
“E o Mozgó?”
“Era um bom homem, o Imre. Um bom sapateiro, um rapaz bom”.
“E tornou-se amante da Dora?”
“Amavam-se”.
“E quando se conheceram?”
“Em Abril, há uns seis meses”
“Mas se ela deixara o marido...”
“Qual marido?”
“O assassino, o Toth...”
“Ele não era o marido”.
“Então, como se explicam os ciúmes? O Toth matou para lavar a honra”.
“A Dora e o Imre iam casar, senhor jornalista. O Toth não matou para lavar a honra”.

 

Senti em todo o corpo uma angústia terrível e não sabia libertar-me daquela vaga de emoções confusas. Era uma manhã gelada de caras tristes. Fechei o meu capote e tive um arrependimento súbito por ter trazido o chapéu mais elegante. Andei pela rua enlameada e, sem pensar muito no que fazia, com um asco na minha disposição, dirigi-me à maneira dos sonâmbulos para uma pequena taberna escura. Não me saía da cabeça a imagem, com impressionante precisão, da face angelical da morta. E pensei que a minha própria pele enregelada era um prolongamento do corpo inerte de Dora. Em Budapeste já contavam a história de dois amantes mortos  pelo marido enganado e o mundo parecia-me deslocado do eixo, uma mentira a esvair-se sob a mortalha cinzenta das nuvens que tombavam na terra, tapando os segredos dos homens.
Pedi ao taberneiro uma aguardente bem forte e só depois de a beber de um trago pressenti a presença de um homem ao meu lado, encostado ao balcão da taberna.
“Chamo-me Kolozsvári e assisti à ameaça que o Toth fez a Mozgó”, disse ele, sem preâmbulos.
“Quando é que isso aconteceu?”
“Na semana passada”.
“Conte lá, senhor Kolozsvári”.
“Foi aqui mesmo nesta taberna. O Imre estava tranquilamente a beber uma caneca de cerveja, conversávamos sobre coisas da vida”.
“O senhor era amigo dele?”
“Muito amigo dele. Era um bom homem, o Imre. Valente e generoso”.
“E a ameaça...”
“O Toth entrou e soubemos que ia haver sarilho. Está a ver? O meu amigo ia casar com a Dora e o Toth achava que tinha direitos sobre ela, porque tinham vivido juntos durante duas semanas, no inverno passado. Aquele facínora avisou que o queria longe da rapariga e o Imre respondeu com firmeza que se amavam e iam casar. De repente, o outro tirou do bolso uma navalha de barba e ameaçou-nos. Todos nos levantámos, mas era tarde; ele agarrou o Imre e encostou-o a uma parede – foi ali, senhor, - agarrou o meu amigo com uma força bruta e não pudemos fazer nada. Estávamos tão surpreendidos. Foi tudo demasiado rápido e nem reagimos. De repente, sem aviso, o Toth traçou o Imre na cara. Fez um golpe seco e rápido. Depois, largou-o. O Imre contorceu-se, gritou, ficou de joelhos à mercê dele, mas o outro recuou. Nós avançámos para ele, dispostos a agarrá-lo, mas ameaçou-nos com a navalha. E disse assim: 'Isto é só um aviso. Longos dias têm cem anos. Se voltas a tocar na Dora, mato-te como a um cão'. E saiu a correr, sem nos dar tempo de o perseguir. O Imre sangrava da cara, mas o golpe foi superficial. Ele nem deve ter dito nada à Dora, que era uma mulher muito bonita e morreu por ser a mulher mais bonita que já alguém pôs os olhos em cima. E quando penso nisto, já nem sei se o Toth matou por ter perdido a Dora ou por odiar o Imre. É uma tragédia, senhor, uma tragédia”.

 

Quando regressei ao jornal, Braskó deu-me boleia na sua tipóia. Viemos silenciosos todo o caminho, mas a meio do percurso, o detective perguntou-me o que dissera o assassino. Contei-lhe o relato de Toth e ele riu-se, enquanto acendia o charuto que eu lhe oferecera.
“Um mentiroso, aquele malandro. Já tem a defesa toda organizada, mas não tem hipótese de escapar à forca. Vai dizer ao juiz que a cegueira do ciúme leva o ser humano a fazer o impensável. Já estou a ver o choradinho. Mas ele entrou no quarto sem fazer barulho e surpreendeu os dois amantes a dormir. Primeiro, matou a rapariga com um tiro à queima-roupa...”
“Claro, daí o aspecto sem sofrimento...”
“Naturalmente. O sapateiro era o alvo principal. O malandro queria fazê-lo sofrer. Que ele tivesse tempo de perceber que a amada estava morta. Só depois o abateu. As testemunhas ouviram os tiros com um intervalo de quase cinco minutos. Ninguém fez nada por medo. Podiam ter salvo o sapateiro, ou talvez tivéssemos agora mais algumas vítimas a lamentar”.
“Portanto, aqui não houve ciúmes”.
Braskó fez cintilar o charuto, foi envolvido por um nuvem de fumo, ficara pensativo com a minha pergunta.
“Há ciúmes, talvez. Os ciúmes que os teus leitores querem. Eles tornam a história mais confortável. Dessa forma, não há tanta malvadez, nem monstros que odeiam a felicidade dos outros e que não suportam ver a beleza ou aquilo que é puro. Isto ajuda a explicar o abismo. Os ciúmes explicam as trevas e tudo o que não se pode dizer. Explicam o contexto”.
“É melhor assim. Dora era tão bonita, que o Toth enlouqueceu de ciúmes”.
“Demasiado bela, como um anjo insuportável”, disse Braskó, ao encolher os ombros. 

 

Lajos Kormányos
  

*nota do tradutor
 


 
  

 

publicado por Luís Naves às 15:02

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Quinta-feira, 3 de Junho de 2010

Naquele tempo

Naquele tempo o Sol não fazia arder os olhos e as noites

 

eram como dias,

 

apenas envoltos em mantas para que nunca terminassem.

 

No cemitérios dos automóveis estendia-me no chão

 

e as estrelas fingiam tão bem a sua luz que sugeriam palavras

 

como “Sempre”.

 

Naquele tempo havia mais paredes em ruínas e no entanto

 

qualquer tecto era uma casa.

 

 

publicado por João Villalobos às 14:50

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Segunda-feira, 31 de Maio de 2010

Nada e o mundo

Deixei uma manhã que Deus partisse

 

levando o teu nome na sacola das cartas.

 

Recordo que não chovia nem fazia Sol,

 

apenas uma sombra por cima de tudo

 

cantava desafinada a mesma música

 

do “She Loves You”.  O yeah yeah yeah

 

riscado e a pigarrear de tanta mentira

 

feria os ouvidos e eu já com os olhos fechados.

 

Apenas as mãos, agarradas para nada e o mundo.

publicado por João Villalobos às 22:59

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Terça-feira, 25 de Maio de 2010

Na varanda das noites

Fugi dessa casa por construir

 

e hoje tenho os dedos amarelos de pensar porquê.

 

Fui sem querer.

 

Onde o vento era, aí estava eu em lugar algum,

 

como se fosse

 

ou conseguisses pensar-me, ver-me sem medo,

 

assim pendurado na varanda das noites.

publicado por João Villalobos às 17:00

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Sábado, 17 de Abril de 2010

O seguro

Vasile conheceu o duplo dez minutos antes do atropelamento. Era um rapaz alto, vestido com uma roupa igualzinha à sua, jeans no fio, camisa azul, grandes manchas escuras de suor debaixo dos sovacos. Tinha a barba mal-feita e começou a imitar o seu sotaque moldavo.
“Os gajos falam assim”, dizia, para o turco, “abrem as palavras como se fossem latas de conserva”.
E ria-se.
Vasile tinha passeado meia hora na companhia do turco (não era turco a sério, aquele era o seu nome de guerra). Andaram tranquilamente pelo jardim e, depois, para se ver que Vasile passara ali na zona do centro comercial à hora certa, ainda meteram conversa. No café, perguntou pelas horas; e o proprietário, desconfiado como convinha, apontou para o grande relógio na parede:
“Não sabe ver?”
“Nem tinha reparado, senhor”, esclareceu o moldavo, como se estivesse muito surpreendido: “Quem diria? Já cinco e meia”.
Ainda pensou que o amigo lhe iria pagar um bagaço, mas beberam bicas. Depois, ele e o turco saíram para a rua e encontraram-se com o duplo nas arcadas de um prédio, num sítio escondido.
“Percebeste como é que ele é?”, questionou o turco.
E o outro disse que sim.
“É mais baixinho do que eu pensava”, afirmou o duplo.
“Faz-te mais pequeno. Agora, não vais roer a corda”, cortou o turco.
“Não te preocupes, pá. É fácil, não stresses”.
Vasile e o turco foram para o carro e já nem viram o que aconteceu depois, a parte do atropelamento propriamente dito. Acontecia sempre mais ou menos a mesma coisa: o duplo punha-se à frente de um carro que viesse devagarinho, de preferência na passadeira, e durante a travagem desequilibrava-se, caía sobre a parte de cima do automóvel e rolava espectacularmente pelo chão. Tinha imenso treino daquilo, fora jogador de futebol. Depois, levantava-se, combalido, a esfregar o joelho direito. Ou se a coisa tinha corrido bem, ficava no chão, a rolar como se tivesse levado um tiro no estômago, e a gritar de dores imaginárias.
“O meu joelho, o meu joelho, estou desgraçado”, berrava o duplo, se do carro saísse uma mulher impressionável. Se ainda por cima fosse gira, deixava-se amparar.
Seguia-se a charada dos números do seguro. “Já me estou a sentir melhor”, dizia o atropelado, depois de ter sacado a informação. “Até bastante melhor. Já passou, acho eu”, acrescentava, enigmático, sem se esquecer do sotaque moldavo e de acrescentar o nome de vítima: Vasile Stepanici. Depois, era sair dali a coxear, antes das ambulâncias chegarem. Andava três quarteirões, enfiava no carro do turco, estacionado longe da vista. Era assim, aquilo que o advogado viria a chamar modus operandi.
“Foste convincente?”, perguntou o turco.
“Fiz igualzinho a um jogo de regionais em que empatámos porque consegui expulsar o goleador deles. Atirei-me para o chão de tal maneira que o árbitro ficou mais aflito do que eu”.
“E agora?”
“A condutora era uma mocinha ingénua. Até chorou. Tens aqui o número do seguro dela”.
O turco encolheu os ombros e ala, que se fazia tarde.

 

O duplo era adepto de reminiscências futebolísticas. Todas as histórias convergiam num jogo em que lixara o joelho. Não aquele jogo, em que fingira, mas outro, a sério. Tivera direito a ovação, à saída da maca em que o tiraram, como se faz aos feridos da guerra, mas com as palmas. Fim de carreira e ainda nem completara 20 anos. “As malditas infiltrações, o filho-da-mãe do massagista”, resumia. “Nada funcionou. A lesão era tramada como o diabo, os gémeos espatifados, o menisco arrebentado. Uma vez, o sacana do treinador pôs-me a jogar a dez minutos do fim, que tínhamos de ganhar, precisava do meu sacrifício, e às tantas senti aquele puxão que até parecia que me estavam a arrancar o joelho com um alicate. Doeu que se fartou. Sabes o que é uma dor no joelho, Vasile? É uma dor fodida”.
Uma pausa, o siêncio, depois o final injusto da história: “Nunca mais andei como deve ser. Um dos rapazes da equipa, que não tinha nem metade do meu jeito, acabou no Benfica. Mesmo como suplente, ganhou um dinheirão. Era um sarrafeiro do pior, aquele, um cepo dos que se põem a jogar à frente dos nove defesas só para mandar um gajo dos outros para o estaleiro. Não jogava um caracol, mas ganhou para cima de uma pipa de massa”.

 

Vasile não era um rapaz brilhante. Por esta altura do campeonato ainda não tinha percebido porque razão o turco se interessara por ele. Às sete da tarde, quando chegaram à garagem os outros membros da quadrilha, Vasile ainda pensava que o iam contratar para serviços de reparação automóvel. Não percebia nada de motores, carburadores e válvulas, mas um tipo sempre se desenrasca, pensou. Aprenderia depressa, pensou. Era melhor do que passar fome, pensou.

O turco tinha um martelo na mão e disse assim:
“Amigo Vasile. Chegou a hora”.
“A hora de quê?”, perguntou o moldavo, antes de sentir uma dor devastadora no joelho direito. Rebolou no chão, a agarrar-se ao joelho, a contorcer-se como um louco, a gritar como fazem os porcos no matadouro. Guinchou a plenos pulmões, num uivo comovente que chegou a alarmar o turco e os restantes membros da quadrilha. Uma berrata que só eles ouviam.
“Parecia o Maradona a lesionar-se”, comentou o duplo.
“Se calhar, martelei-o com força a mais”, ainda temeu o turco.
Depois, a tempestade amainou. Vasile já só chorava de dor insuportável. Estava em posição fetal. Disse qualquer coisa incompreensível em moldavo. E então perguntou, numa voz sumida:
“Porque é que fizeste isto, turco?”
“Se queres a tua parte, tens de ir ao seguro reclamar”, respondeu o turco, implacável.

 

Um mês depois, quando sacaram a massa, o duplo ainda lhe deu boleia até à estação. Explicava ao amigo moldavo que se fosse à polícia fazer queixa ainda ia preso, por cumplicidade com o esquema da quadrilha, que no fundo não prejudicava ninguém, porque o seguro pagara a julgar que ele, Vasile, tinha sido o atropelado.
“E levas 10%, não é nada mau. Mil euros por um joelho partido é mais do que eu ganhei. E o seguro pagou os tratamentos. E tiveste sorte do turco não te dar uma martelada na cabeça quando ameaçaste ir à polícia. Ele às vezes tem uns vibes assim para o bruto”.
Vasile foi coxeando até ao cais de embarque. O duplo levava-lhe a mala leve. Ouviu-se o uivo do comboio, ao fundo.
“Então, boa sorte para ti, amigo Vasile”.
O comboio parou. O moldavo subiu para a carruagem, em dificuldades, e o atropelado passou-lhe a mala.
“Tu és bom homem, não és como o turco”, disse Vasile. “Espero que voltes a jogar futebol”.
“Não é possível. Estou todo espatifado”.
“Então, que tenhas sorte. E não te magoes nos atropelamentos”.
“E tu, tem atenção a gastar a tua massa”.
“Vou ter cuidado”.
“O seguro morreu de velho”.
Disseram adeus um ao outro e o comboio lá seguiu, aos solavancos a princípio, como se coxeasse levemente sobre os carris, depois num deslizar perfeito, a escorregar na linha.


 

publicado por Luís Naves às 17:11

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Domingo, 21 de Março de 2010

Aos domingos

Aos domingos perpassam, entre as paredes,

os avisos murmurados de avós mortas.

Querem-nos bem, não o duvido jamais...

 

Mas acordam-nos a fome no coração,

a memória de risos aninhados em mantas

e sopas de pão.

 

Aos domingos éramos ainda mais bons.

Beijava-lhe a face seca na igreja húmida

e o Senhor acompanhava-nos à porta de casa,

 

caminhava sobre as águas daqueles olhos claros

nesse tempo em que a paz nos rodeava

de silêncios raros.

 

Aos domingos regressam o cheiro da laca

e do pó de arroz, feitos aviso retornam

sem culpa nem dor. Antes pedem que seja feliz.

 

Pergunto-me então sobre o desvio do caminho

e é assim que agradeço, entre pecados e omissões,

não deixar-me sózinho.

publicado por João Villalobos às 21:14

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Quarta-feira, 17 de Março de 2010

Onde os pássaros mordem

Eis que o tempo se oculta nesses lábios onde os pássaros mordem.
Retenho deles uma palavra em surdina que permanece,
húmida e respirada, odorífica e doce.
 
Por dizer descansam as certezas.
Hoje foste sal em ervas frescas, o corpo entregue feito carta.
 
Respondi-te assim, com a calma dos loucos:
Virá em breve essa primeira tarde, inteira e ofuscante.
Nesse dia a nossa música antiga tocará. E eu em ti.

publicado por João Villalobos às 11:38

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Segunda-feira, 1 de Março de 2010

Uma coisa estúpida


 

Acordara com a boca cheia de papéis molhados. Lâminas de luz atravessavam as frestas dos estores e projectavam-se na parede; saiu da cama; o corpo da mulher enrolou-se nos lençóis, num resmungo; foi descalço até ao banho, olhou-se ao espelho, viu a sua figura desgrenhada: o ventre alargara, tinha a cara pateta.
A manhã foi gasta em atrasos. Os miúdos sabiam que nesse dia não iam à escola. Joaquim Nogueira teve vontade de distribuir tabefes, mas Maria Ângela apoiava as crianças. Quando saíram para as compras eram quase dez horas e viu que o carro tinha pouca gasolina, por isso pararam no posto de abastecimento, mas havia uma fila imensa porque o preço ia subir na semana seguinte e todos os forretas atestavam. Começou a buzinar para um idiota que não saía da frente e este respondeu com um gesto obsceno. Hesitou se saía do carro para esmurrar o filho-da-mãe, mas o tipo de dedo no ar foi salvo pelo que disse Maria Ângela:
“Se não o tens maior do que isso…”
Fora tão ridículo que desataram os dois a rir. E o gajo, ao vê-los a rir, meteu a viola no saco. Depois, arrancou da fila com chiadeira de pneus. Tinha um daqueles carros tuning, todo artilhado. Joaquim abanou a cabeça, a lamentar, enquanto o puto, inclinado para a frente, perguntava aos pais de que se riam:
“Coisas de adultos, chega-te para trás”, gritou Joaquim.
Saíram da bomba de gasolina e seguiram em procissão até ao hiper. Havia bicha, o costume. Depois, andaram às voltas.
“Eu queria vir mais cedo para poder estacionar”, protestou, para Maria Ângela, a culpá-la pelo atraso. Mas ela encolheu os ombros.
Encontraram o vizinho David à porta do supermercado, numa barafunda de gente que entrava e saía. Era um daqueles encontros por acaso, meio incómodos.
Joaquim reparou que o vizinho parecia distraído, a olhar para Ângela, mas foi um gesto tão rápido que mal se podia notar, um embaraço quase inocente. Ela inclinara a cabeça, numa submissão, talvez numa promessa. Depois, recompôs-se, disfarçou. Houve um relâmpago de beleza na face dela, sorrira com alguma malvadez. Maria Ângela andava com mais cuidado na aparência (crises de trintona, pensava). Sentiu uma comichão de incerteza. Era coisa para estragar o sábado a qualquer um.
Só depois apareceu a mulher de David, uma gorda macambúzia. Reparou como era feia: cabelo espigado, de quem não ia ao cabeleireiro; a pele por tratar, unhas roídas. E os dentes, um desleixo. Não admirava que o tipo deitasse olhares à mulher alheia.
Trocaram cumprimentos de circunstância. Afectuoso, David metia-lhe a mão na ilharga: um compincha, como um carteirista procura a carteira. Estás bom, estou óptimo, eu também, andas mais barrigudo, tens de ver isso. O malandro cravava a farpa. Joaquim Nogueira esteve quase para comentar a perda de cabelo do vizinho, mas o outro teria a resposta clássica, que era sinal de bom amante, e não quis dar abébias.
Depois, o vizinho David seguiu para as lojas do exterior do estacionamento, com a feiosa da mulher dele.
O hiper parecia um comício. Pessoas aos berros, uns mais apressados, ninguém com paciência, todos a olharem para o ar, na direcção das prateleiras altas, como bandos de patos a andarem no chão, de bico espetado, olhando o ar como num sonho. E, na confusão, a música suave em fundo; Sinatra, pareceu-lhe Sinatra, como era a canção? Something stupid, um tipo que quer encontrar alguma coisa de inteligente para dizer e não consegue, diz sempre uma coisa estúpida. E o raio da melodia ficava de tal maneira no ouvido que fez deslizar o carrinho às voltas, como se estivesse a dançar. Maria Ângela queria ir para outro lado e chamou-o e discutiram e ele deu-lhe o carrinho e os miúdos e disse que se encontravam naquele exacto lugar daí a 40 minutos. E foi assim que, sozinho, avançou para a zona das televisões, enquanto assobiava something stupid, a fazer-se ouvir sobre uma música nova, que não queria saber qual era; aquela entrara-lhe pelo ouvido dentro e parecia que lhe rebentava a cabeça.
Ficou a ver os produtos num espaço de roupa de desporto. Os emblemas eram engraçados. Percebeu que havia promoções e pechinchas, e viu aquele fato de treino azul, de duas peças. E ocorreu-lhe então o comentário do vizinho David (estás barrigudo) e estava: tinham posto um espelho naquela secção e observou-se, primeiro de frente, depois de perfil; o ventre inchara e parecia mais atarracado e as costas dobradas davam-lhe mais anos. Que diabo, não tardava a obesidade irreversível. Era urgente que fizesse corrida e devia começar quanto antes. Tinha umas velhas sapatilhas em casa, faltava-lhe o fato de treino. Correria nas traseiras da última fileira de prédios do bairro, na estrada antiga, restos de uma urbanização que nunca fora construída, junto a um eucaliptal onde havia umas barracas. Uma pista perfeita.
 Pegou no fato de treino e foi à procura da família.
Viu Maria Ângela e os dois miúdos na quinta fila e, quando se aproximou, a mulher estava a passar um ralhete à menina, que não parava quieta. Havia nervos no ar.
Maria Ângela interessou-se pelo que ele trazia na mão, mas a pergunta foi irónica. Joaquim explicou que era um fato de treino, barato e tudo.
“Setenta euros, barato? Estás maluco?”
Ficou calada, como quem dizia que não queria discutir. Mas estava zangada e deitou-lhe um olhar de censura quando ele lançou o fato de treino para o carrinho de compras.
“Vamos para casa, estou farto disto”, disse ele.
“Falta a fruta. Os meninos precisam de comer fruta”, respondeu a mulher, numa fúria.
Quando saíram era quase meio-dia. Ainda gastaram tempo na fila para sair e no acesso à estrada, numa rotunda que entupia aos sábados. A irritação só passou quando Maria Ângela lhe berrou para guiar com menos acelerações, porque os meninos não se seguravam no banco de trás. Avançava dez metros depressa e travava; depois, repetia, como se quisesse abalroar o carro da frente e só desistisse no último segundo. Então, distraiu-se, e houve um guincho fundo que o assustou, o som de vidro estilhaçado e, no silêncio, irrompeu a sentença do puto, atrás: “Já fez merda”, disse o sacaninha precoce.
Enquanto se iniciava a berrata no interior do carro, com a miúda a chorar e Maria Ângela aos guinchos para que ela se calasse, o que só aumentou a crise, Joaquim saiu para ver os estragos. O carro da frente, um corsa verde, perdera um farolim da traseira. Da viatura saiu uma rapariga que não tinha vontade de lhe perdoar a entrada atrás. Vinha vermelha como uma virgem. E no ar começou uma furiosa buzinaria, enquanto um velhote a pé se aproximava, solícito:
“Vi tudo, menina, ele teve a culpa”, disse o velhote transeunte.
 “É o que dá ter pressa”, afirmou a rapariga.
“Põem-se a travar quando não há nada à frente”, defendeu-se Joaquim.
Aquela tentativa de contornar o problema teve a propriedade de a irritar ainda mais. Ela pôs as mãos na cintura fina, a boca torcida descontrolava-se e perdera a beleza, avançou com o peito:
“Ouça lá, você não vinha a fazer habilidades, ali atrás?”
“Só digo que as pessoas travam por tudo e por nada. Deviam proibir as mulheres ao volante, porque se assustam com a própria sombra”.
O tom de voz dela subiu para sol sustenido:
“E ainda acha que tem razão? Bate-me na traseira e ainda acha que tem razão? ”
O velho saltara em defesa da dama, cuja traseira (observou Joaquim quando ela se virou para tirar a mala do interior do carro) aliás era bastante larga e, portanto, difícil de evitar, mas não o disse assim, estava disposto a apaziguar a situação.
“Eu vi tudo. Este senhor vinha a fazer ralis e não travou a tempo”, explicou o velho, a meter-se onde não era chamado.
A buzinadela colectiva dos carros que se acumulavam depois da rotunda tornou mais urgente a resolução do problema. O irritante era a cacofonia das diferentes buzinas, umas mais agudas e prolongadas, outras curtas e graves. Faziam doer os ouvidos. De súbito, Joaquim sentiu-se desconfortável, com a fúria da rapariga, os estilhaços do farolim, as mãos na ilharga (genes de varina) e o ar beato do velho, e um carro que irrompia, a acelerar na faixa contrária o condutor a gritar insultos. As coisas começavam a andar à roda; estava tudo distorcido. Só havia uma saída: render-se.
“A culpa é minha, tudo bem”, admitiu, nem assim apaziguando a rapariga, que desatara numa lição de moral, ainda a dizer que ele era um chauvinista, enquanto o velho lhe chamava fangio de meia tigela. Porque é que estavam a fazer tanto barulho? Sugeriu que tirassem os carros do caminho, apontou para um local onde poderiam preencher a papelada do seguro e teve de rosnar para o velhote para que se afastasse, porque este tentara atiçar as brasas, a inventar que não podiam tirar as viaturas do local antes de a polícia chegar. Atrás, apitava-se com energia e a rapariga cedeu. O prestável cidadão sénior resmungou qualquer coisa sobre a ingratidão e retomou a marcha.
“É melhor dares de frosques”, disse Joaquim, de vingança para o velho, mas em voz muito baixa, de maneira a que ninguém o ouvisse.
Gastou meia hora a preencher os papéis do seguro. Depois, fugiram para casa e Maria Ângela preparou o almoço. Os miúdos não paravam quietos, mas a sua mulher ficara calada, demasiado calada. O silêncio antes da tempestade.
Apenas trocaram palavras de circunstância. Ela ralhou-lhe quando começou a deitar sal na comida e ele ainda deitou mais, em desafio, mas a comida ficou demasiado salgada. Comeu com dificuldade, mas sem mostrar repulsa, para não dar parte de fraco. Uma porcaria, mas comeu em excesso e ficou pesadíssimo, com tanta água que teve de beber.
A refeição tornou-o sonolento, mas o miúdo queria ir jogar à bola e prometera-lhe brincar à tarde.
A tarde estava calma, mas o bairro parecia anormalmente habitado. Quando pensava nisso, sentia quase um arrepio: nos dias de semana, aquela era uma cidade fantasma; só recuperava ao fim de cada dia, quando toda a gente regressava do trabalho, desembarcando em pequenos exércitos de cada vez, na estação de comboios. E, no crepúsculo, as luzes dos prédios começavam a acender-se, um quadrado de cada vez; até que, quando já estava noite escura, cada edifício se iluminava como uma grelha de bingo, fila completa, cartão completo.
No quarteirão havia uma tira de verdura: árvores raquíticas, que a câmara plantara na Primavera anterior, e com três bancos corridos, um dos quais à sombra, onde se sentara um homem, a ler um livro de bolso. E entre os bancos, um espaço plano que servia para jogar. Foi o local que escolheram, sem carros nem vidros à volta, e se dessem um chuto mais forte a bola não iria para longe.
Começaram por dar toques suaves na bola, mas faziam barulho. Reparou, pelo canto do olho, que o homem sentado os observava ansiosamente: o livro aberto começou a descer um pouco, para um ângulo afastado que tornava difícil a leitura, e o olhar dele fixava-se por vezes nos dois jogadores, óculos precariamente pendurados no nariz; mas não se entendia se o gesto era de irritação, curiosidade ou de quê. Por vezes, o homem movia o corpo, com impaciência. Entretanto, o miúdo excitara-se e fazia cada vez mais barulho, disparando a bola na direcção de Joaquim com força e ainda mais força, a imitar os craques do futebol. Sentiu uma vaga de terno bem-estar, por brincar com o filho, mas o interesse lateral pelo homem sentado perturbava o que lhe sobrava da sensação agradável. E resumia mentalmente: o maduro veio para a sombra do jardim ler e começa a estar irritado com o barulho que o impede de se concentrar na leitura. Com um pontapé seco, o miúdo chutou a bola com força inesperada e ela voou até ao banco de jardim, atingindo o homem em cheio. Livro e óculos voaram para o chão e o homem ficou paralisado, o olhar indignado a fuzilar Joaquim Nogueira.
 “Porque é que não vai brincar com o seu filho para mais longe, para um sítio onde não incomode as pessoas?”, disse o homem, com uma aparente calma.
Joaquim ficara sem resposta. Esperara mais agressividade, mas decidiu combater. Que direito tinha aquele pedante de se sentir superior?
“O miúdo não volta a chutar com tanta força”, prometeu.
O outro enervava-se:
“O senhor está a incomodar, não percebe isso?”
“Só demos alguns chutos na bola. Não estamos a incomodar ninguém”.
“Não é verdade. Está a incomodar-me. Estou a tentar ler”.
“E quem o impede? Não voltamos a chutar na sua direcção”.
O homem parecia estupefacto e ficou em silêncio, muito corado. Para Joaquim, a equação era simples: se o outro queria discutir por causa de uns chutos na bola e por causa de um livro, então força, que o fizesse. Estava disposto a defender o seu direito de brincar com o filho num espaço público. Aquele local não era de quem chegava primeiro e se instalava a ler. E que lhe importava isso? Ler não ocupa espaço, nem é incompatível com o divertimento de cada um.
Tinha o pé sobre a bola, parada no chão, mas num golpe leve fez com que saltasse no ar e deu-lhe três toques, até a perder de novo. O homem levantou-se, hesitou, depois abandonou o local, sem mais uma palavra.
O desconhecido tivera uma reacção estranha. De repente, deixara de fazer sentido continuar a dar toques na bola. Teve dificuldade em convencer o miúdo de que não lhe apetecia continuar o jogo. O puto quase chorou, mas teve de aceitar. Joaquim pegou na bola e subiram para casa. Eram três e meia, hora de transição, parecia-lhe, enquanto os habitantes dormiam a sesta ou terminavam os passeios depois de almoço, outros saíam para visitar as famílias, deixando lugares de estacionamento. E até o ruído lhe parecia diferente, pausa de tranquilidade a soar fantasmagórica.
Quando chegaram perto da casa, o filho já se esquecera da bola e anunciara que queria ver televisão. Joaquim subiu as escadas como se subisse ao calvário. O peso da angústia, que não sabia de onde vinha, quase o asfixiava.
Em casa, reinava o silêncio. A miúda ficara no quarto, a fazer os deveres da escola, e o rapaz desapareceu na sala, para ver televisão. Maria Ângela deitara-se. Fechara os estores, para manter o quarto escuro. Ele entrou sem fazer barulho e percebeu que ela não adormecera. Perguntou o que se passava e recebeu em troca um murmúrio. Enxaqueca.
Sentou-se na borda da cama. Ela estava vestida, descalça, as mãos sobre a cabeça, a esconderem os olhos.
Uma qualquer ferida por mencionar alastrava como se fosse uma mancha inerte e cuja dor era igual a uma comichão, ligeiramente incómoda a princípio, mas sempre presente e nunca insuportável, tornando-se a pouco e pouco rotina, facto quase irrisório e esquecido.
Uns vagos ciúmes ou o desinteresse. Ela engordara nas ancas, parecia mais pesada. Tentou recordar-se do corpo dela e percebeu, com surpresa, que se lembrava apenas de fragmentos, de episódios soltos do passado.
Que restava de tudo isso? Uma certa forma de ruínas, pensou.
Foi então que se lembrou do fato de treino. Onde estava? Foi procurá-lo, desembrulhou-o, cheirava a goma e plástico. Vestiu-o, pôs as sapatilhas velhas e saiu de casa.
Levantava-se uma brisa que fazia ondular os eucaliptos. Atrás dos prédios soturnos, havia uma velha estrada esburacada. A pista de corrida ideal. Joaquim Nogueira olhou à volta e não viu ninguém. Sentiu uma calma estranha, mas uma outra sensação que o inundava, primeiro devagarinho, depois numa irrupção violenta. Raiva, sim, era raiva o que sentia: pelas humilhações que cobriam toda a sua vida, como um orvalho.
A primeira corrida foi a passo ridículo; dava pequenos saltos, à semelhança daqueles coelhos que não querem fugir dos caçadores por não se aperceberem do perigo; depois, ligou o turbo e correu vinte metros numa explosão de vigor; e recomeçou o passo lento, um passeio na avenida. Chegou ao outro lado da estrada. Andara cem metros e havia uma barreira que tapava metade do caminho; para além do obstáculo, via-se o topo de algumas barracas. Não teve curiosidade e largou numa corrida forte em sentido contrário, a deitar tudo cá para fora, acelerando até ficar sem fôlego; depois, outro lanço a velocidade, para suar bem e descarregar a irritação que o consumia nos próprios ossos. Correu, correu loucamente, até sentir os músculos das pernas a sufocarem. E parou junto à barreira, para encher os pulmões. Sentia uma sede devastadora e o corpo inchara de força.
E foi nessa altura que viu os dois pretos, que olhavam para ele. Estavam parados, com ar mau, observando o que ele fazia. Assustou-se de repente. Deviam ser das barracas. Talvez fossem ladrões. Sentiu que não havia fuga, que não teria velocidade para fugir deles, pois as pernas estavam esgotadas e a raiva dissipada tornava-o um cordeiro disposto ao sacrifício. E na mão de um dos pretos brilhava o que lhe pareceu ser uma faca. Sentiu um arrepio de puro pânico.
Nem pensou muito. O cansaço, o medo e a dor vieram todos ao mesmo tempo, as pernas fraquejaram e caiu no chão, sem conseguir respirar e sem poder mover-se. O braço foi trespassado por uma dor destruidora, de mil agulhas cravadas. Tinha os olhos abertos na direcção do céu e ainda viu a cara dos dois pretos que o olhavam, no contraste do azul, muito alarmados, segundo lhe pareceu.
E um dos homens dizia para o outro para chamar uma ambulância; não sabiam o que fazer.
E a faca era um telemóvel e um dos pretos chamava alguém do outro lado:
“Ficou mal, está caído, andava a correr na estrada, vestido com um fato de treino muito quente”. E um sussurro eléctrico, incompreensível, saía do aparelho.
Os pretos abriram o fato de treino. Obedeciam a instruções do além. 
“Aguenta, vizinho, aguenta um pouco que já vem ajuda. Os médicos dizem que se calhar tiveste um farto do coração e que tens de aguentar um bocadinho”, disse o homem que falara ao telemóvel. “Estão mesmo a chegar”.
Joaquim pensou em água. Rios de água fresca. Tentou dizer a palavra água, mas a boca não se movia. O braço formigava e o peito parecia ter fogo a correr-lhe dentro como se fosse água. Mas a sede era o que lhe doía mais. E, ao longe, pareceu-lhe ouvir a melodia de Sinatra. Com receio de dizer qualquer coisa de estúpido, decidiu não dizer nada.
Os dois pretos desconhecidos continuavam debruçados. Não saíram dali até se ouvir uma sirene que se aproximava, numa aflição. Joaquim Nogueira notou uma grande calma na sua raiva. E, tirando a sede, sentiu-se bem, verdadeiramente bem, até chegar a escuridão.

 

Publicado na revista das Correntes d'Escritas 2010 

publicado por Luís Naves às 23:36

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Segunda-feira, 8 de Fevereiro de 2010

London distance call

Markets fall all over

e eu sem fumar a minha cigarrilha.

That's all I care.

There's a blonde star fainting in the spotlight e o som dos talheres,

some tea on the other table & 

a nice old couple

finishing dinner, with no words left for each other.

American fathers fathers

who lost their voices somewhere in the past

or whatever...You know...

Onde estás? O omnipresente piano deste hotel que é o mundo inteiro

desatina.

And there's no will for jazz

or flirting with the charming short waitress who aks if

"Is everything ok, sir"?

 

Só um jornal cor de salmão por companhia e tu algures,

distante fonte de alegria.

 

publicado por João Villalobos às 22:03

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Segunda-feira, 1 de Fevereiro de 2010

A Floresta cor de sangue

I
Rivaud ouviu um grito e quando olhou para trás, assustado, ainda viu o seu companheiro, Leduc, tombar inanimado. O arqueólogo tinha sido atingido por um insecto e desabara entre arbustos. Embora estivesse nos limites das suas forças, Rivaud correu na direcção do ferido. Descobriu o corpo inerte, o aguilhão cravado nas costas como se fosse uma faca. Leduc agonizava e lançou um derradeiro suspiro, morrendo ainda estendido no chão, sem dar tempo sequer para o jovem biólogo o segurar.
Não havia mais nada a fazer, mas este foi, para Rivaud, o momento de maior desespero. Olhou para a floresta que o cercava, esmagado por uma angústia que até aí jamais sentira. A selva parecia escorrer sangue, amálgama de imensas copas com mais de duzentos metros de altura, um muro de folhas que escondia a luz pálida da atmosfera e se propagava em distâncias que quase não se podia conceber, quando olhado daquele ponto de vista baixo, do chão esponjoso. Formas de espécies não catalogadas, com flores bizarras e perigosos insectos do tamanho de um punho; mas sempre aquela mesma cor vermelha, fantasmagórica e cheia de sombras. Uma molécula semelhante à clorofila, mas púrpura, transformara o mato num peculiar cenário: dir-se-ia que a selva era exclusivamente feita de tecidos longos, hastes e troncos, (pareciam panos tingidos com o mais berrante do roxo ao rosa), raízes que vinham do topo das árvores (cinco vezes maiores do que as mais altas da Terra), e toda a arquitectura da natureza funcionava como uma gigantesca e profunda caverna, onde flutuava um cheiro a podre e um ruído de fundo, poderoso, que lembrava uma sinfonia ameaçadora, interpretada por instrumentos imaginários.
Segurando o corpo de Leduc, Rivaud escondeu-se nos arbustos, atento ao voo dos mortíferos insectos. Por instantes, o biólogo entrou em pânico; mas, com o tempo a passar, começou a acalmar-se. O fato térmico estava rasgado e deixara de o proteger contra a temperatura de 50 graus. Sentia febre. Mal conseguia respirar e perdera demasiada água. Desfalecia, poderia entrar em choque se não se acalmasse, e foi o intenso treino que lhe permitiu ultrapassar aquele momento. Sentou-se, agarrado ao cadáver do arqueólogo, e controlou a respiração, escondido dos velozes insectos sem nome, que zumbiam ainda. E enquanto esperou que passasse aquela tempestade, um pensamento assaltava-o: como pudera aquela expedição correr tão mal?


II

Uma semana antes, um grupo de quatro exploradores tinha descido naquele ponto da selva densa do Planeta Golem. Levavam equipamento suficiente para enfrentarem qualquer perigo, incluindo fatos térmicos que lhes permitiam manter o corpo em temperatura segura e até escafandros. O local da descida não tinha sido escolhido ao acaso. Cinco anos antes, uma sonda automática fotografara o que parecia ser uma construção no meio da floresta sangrenta. Podia ser uma pirâmide, meio oculta na folhagem vermelha, ou uma cúpula de pedra ou ainda uma superfície espelhada que, de alguma forma, reflectia a luminosidade acima das copas do arvoredo. As imagens não permitiam identificar o objecto, mas era sem dúvida artificial. Em certas fotografias, quase parecia uma cara humanóide de grandes dimensões.
Golem ficava fora das rotas das viagens espaciais e tinha interesse remoto, pois não parecia haver recursos estratégicos naquele planeta do sistema de Sirius. Apenas a opressiva floresta, coberta por um efeito de estufa que tornava o clima demasiado quente para o ser humano. Mas a descoberta de traços que poderiam ser de uma civilização perdida mudara a estratégia da exploração. Nos anos seguintes, foram enviadas sete sondas automáticas, mas nenhuma delas conseguiu produzir qualquer dado significativo, excepto imagens de grande beleza da construção, que ganhava novos contornos, algo fantasmagórica e imprecisa. Um facto tornara-se evidente: Golem parecia inexpugnável.
Os voos com levitadores não permitiram reconhecer o local exacto da construção. Ou teria sido engolida pela selva e não estava visível. Ou brilhava apenas em certas ocasiões. Foram usadas técnicas variadas, mas o arvoredo era impenetrável, com três possíveis objectos dispostos em posições distantes um quilómetro umas das outras. Os restos de uma cidade de uma raça estranha? Ninguém sabia.
Por isso, foi enviada uma expedição de quatro homens armados, dispondo de aparelhos de comunicação, alimentos e água. Desceram de levitadores especiais por longas cordas e entraram na selva. Sabia-se a posição das pirâmides ou torres, ou das construções alienígenas; por isso, tinham descido a menos de um quilómetro do local estimado, montando acampamento. Quando encontrassem o objectivo, abririam uma clareira que permitisse poisar aparelhos com mais material e reforços humanos.

 

III

O primeiro a morrer foi Delba, que comandava a expedição. Foi na madrugada do primeiro dia. Rivaud só podia especular sobre o que lhe acontecera. Delba vigiava o acampamento enquanto os outros dormiam. Quando acordaram, tinha desaparecido. Acabaram por encontrar o corpo a uma distância curta. A mão fechara-se sobre o que parecia ser uma flor esplendorosa. Mas uma análise revelou que as pétalas eram venenosas. Porque razão o comandante tocara, sem luvas, na flor?
O que nenhum dos membros do grupo compreendeu foi o motivo porque Delba saíra sozinho do acampamento, contra todas as regras. Teria sido atraído por algum ruído ou fora excesso de confiança do comandante? Vira alguma coisa ou alguém? Morto sem angústia, de face serena, Delba já não podia responder a essas inquietações.
Os três sobreviventes abandonaram o primeiro acampamento, depois de terem enterrado o corpo do comandante. À luz muito diáfana da manhã, a selva de Golem parecia incendiada, repleta de tons baços e formas horrendas, como se fosse carne viva pendurada num talho de criaturas gigantes.
"Um milhão de plantas desconhecidas para podermos baptizar com nomes novos", brincara Bergerac. Foram estas as únicas palavras que gastaram. Lembrando-se do companheiro, avançaram calados, pisando a cobertura esponjosa, (lianas, troncos e pântanos), rumo à construção alienígena.
Nesse segundo dia, perceberam que tinham perdido os aparelhos de comunicação e de orientação. Os primeiros deixaram logo de funcionar, consumidos por um musgo, ou algo vivo e quase microscópico que entrara no interior dos mecanismos e os incinerara; os aparelhos de orientação eram menos relevantes, pois não teriam de caminhar um espaço demasiado longo para chegarem ao objectivo, que devia estar logo ali, quatro troncos mais à frente, escondido pela cerrada vegetação rente ao solo.
Mas, nos dois dias seguintes, procuraram em vão a construção misteriosa, sempre sem avançarem mais do que um quilómetro em qualquer direcção. Andavam em frente, depois inflectiam para a direita e, de novo, para a direita, apenas 90 graus em cada viragem; após três voltas andavam de novo para trás, sempre num padrão semelhante, como se varressem uma quadrícula. Então, começaram a perceber que nunca encontravam os rastos deixados pela anterior passagem. Onde tinham cortado raízes e fendido vegetação com os grandes machetes, havia agora apenas a paisagem imaculada, monótona, como se novo tecido tivesse engolido os seus rastos.
O cansaço começara a tomar conta dos três exploradores. Sonhavam com a pirâmide, imaginavam que ali, naquela selva, estaria enterrada uma maravilhosa cidade de cúpulas douradas, mais bela do que qualquer outra construção no universo, e nesse refúgio poderiam descansar das suas fadigas.
Foram sendo tomados de alucinações. Bergerac enlouqueceu ao sexto dia. Começou a rir-se muito alto, histérico. Numa ocasião, sem aviso, embrenhou-se no mato espesso. Não o viram mais. Apenas o riso insensato, que parecia provir de várias direcções ao mesmo tempo. E, quando chegou a noite, trazendo o fumo rasteiro da decomposição dos tecidos, o cheiro ácido da putrefacção, Leduc e Rivaud ouviram de súbito um grito pavoroso, que irrompeu daquela paisagem de camadas decompostas, onde apenas a morte triunfava.
Já não procuravam nada, quando foram surpreendidos pelos insectos do tamanho de um punho. Limitavam-se a percorrer uma espécie de labirinto mental, sem rumo ou sentido, apenas marchando, já sem forças, um passo a seguir ao outro, como náufragos numa rotina.

 

IV
Rivaud pensou em ficar no local onde Leduc tombara. Permaneceria naquele exacto lugar até que chegasse a expedição de salvamento. Mas os murmúrios da selva de sangue prosseguiram na mesma entoação de um cântico fúnebre. E o corpo do amigo tornara-se desagradável, coberto por uma espuma, ou seria uma película de um líquido fétido, cuja podridão o contaminava também a ele, com o seu cheiro enjoativo, colado aos dedos, entranhando-se pela pele dentro.
E, quando o desespero já assentara no espírito cansado, emergiam na sua memória as imagens indefinidas daquilo que poderia ser uma construção em forma de cara humanóide, olhando o espaço, ou uma torre, ou uma pirâmide espelhada, a reflectir a vaga luminosidade pálida daquele planeta excessivo.
Acordado pela beleza das imagens, Rivaud ganhou energia para continuar a marcha. Deixou o corpo do arqueólogo escondido por folhas mortas e prosseguiu. Andou durante um tempo que lhe pareceu prolongar-se por muitas horas, cada passo um novo tormento, cada fibra do corpo a protestar com dores, pela desidratação, a febre, o cansaço.
Quando chegou a noite, escalou a um ramo de uma árvore e amarrou-se com a corda que lhe restava. Apesar do desconforto, conseguiu dormir. Sonhou com pirâmides e torres imaginárias, caras alienígenas e também, confusamente, com os nomes de fantasia que tinha escolhido para todas aquelas novas espécies de plantas, que ninguém conheceria jamais. E, quando despertou, ao raiar de uma luz que pairava como se fosse poeira, lembrava-se apenas de farrapos do sonho.
Depois, seguiu o caminho. De novo, as botas afundando-se na matéria esponjosa do solo, o cansaço a anunciar cada movimento, um vapor que parecia sair do seu corpo, a água restante, que se perdia para a humidade geral, como se as suas células fossem os únicos tecidos a secarem naquela armadilha.
E, de súbito, viu um movimento, alguns metros à frente. O que lhe pareceu um homem a andar entre a folhagem. E ouviu distintamente o ruído de machetes que cortavam a selva. O seu coração bateu mais forte, assaltado pela esperança de ser encontrado pela missão de salvamento. Mas logo essa alegria entrou em colapso, ao distinguir, naquela distância, duas figuras de homens, as cores do uniforme iguais às suas: eram ele e Leduc!
Sim, ele, Rivaud, a abrir caminho entre ramos soltos; e, atrás, Leduc, com uma expressão de angústia, o olhar desvairado e perdido. Antes de estar morto!. Uma cascata de emoções tomou conta das suas percepções, mas a visão fora breve, já os dois náufragos desapareciam numa neblina, sem lhe dar tempo para gritar.
Rivaud ainda andou à deriva durante muito tempo, uma eternidade. A floresta de sangue estava repleta de ecos. E, de súbito, foi inundado por uma onda irresistível de cansaço. Encostou-se a um tronco e ficou ali, à espera. Estava a morrer e sabia disso. Então, na derradeira hora, quando lhe restava a desistência, teve um relance das construções misteriosas. Estavam talvez à sua frente, a dez metros. Viu a superfície lisa de uma parede que brilhava, mas a imagem não era estável, parecia animada por uma ondulação de neblina que lhe mudava subtilmente os contornos. Era perfeita, pensou Rivaud, maravilhado com a descoberta. Igual ao sonho que sempre procurara, a quimera inexistente, a inatingível perfeição humana, o tesouro inalcançável, o cerne da alma. Uma miragem.
E, finalmente feliz, em paz consigo mesmo, Rivaud deixou-se flutuar na direcção da morte.

 

(Um conto antigo, sem alterações)

 

publicado por Luís Naves às 20:17

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Segunda-feira, 4 de Janeiro de 2010

Parabéns a nós

Eis-me acordado dentro de ti.

Num soneto de Rilke,
«entre os ínfimos rumores no capim
e o sabor da hortelã».
Ao longe, sobre a falésia e as mais altas ondas
volteiam as aves, luminosas como purpurinas.

Por que afloraram esses dedos os meus lábios,
na terna certeza que só partilham os amantes?
Assim regressámos, sem receio ou cuidado,
e nem tempo tive para guardar o corpo
em qualquer recanto onde pudesse menti-lo.

Agora regresso ao sono, a outras memórias acres,
preciosas, como trufas selvagens sob o chão.

 

Publicado em Janeiro de 2007 no blogue Prazeres Minúsculos e também neste livrinho aqui.

publicado por João Villalobos às 15:02

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Passeio com Átila

 

Da obscura bruma, cinzenta e fria, saiu aquele par de silhuetas. O rapaz era alto e magro, vinha agasalhado com um cachecol velho que destoava do sobretudo. Pela trela, trazia o cão rafeiro, com costela de pastor-alemão. Desceram devagar a rampa e o homem escolheu um banco de jardim, onde se sentou, apesar da forte humidade. Depois, largou o cão da trela e disse, em voz alta, como se conversasse com ele:
“Podes ir, Átila, mas não te afastes”, e admoestava o rafeiro, com o dedo espetado.
A princípio, o animal largou por ali fora, deu três pulos no relvado, cheirou algumas árvores, depois voltou para junto do rapaz, que meditava, a observar o espaço confinado no nevoeiro, as copas de arvoredo no fim do descampado do jardim, as folhas amareladas das árvores mais próximas, a luz que tentava romper a barreira das nuvens.
O cão ficara em frente ao rapaz, sentado sobre as patas traseiras, à espera, a observar o que faria o humano:
“Queres saber como é papar a velhota...”, disse o homem, para puxar conversa.
O cão moveu a cabeça para o lado; talvez para escutar melhor, talvez para tentar compreender a ordem dos sons que o humano fizera.
 “Pois, meu amigo, isso tem os seus problemas”.
O focinho do cão avançara ligeiramente, como que numa interrogação.
“Papar a velhota, digo...”, esclareceu o rapaz.
O cão abriu a boca, descontraíra, tinha a língua de fora...
“Tu deves achar esquisito. Apareci em tua casa, assim, sem aviso, tu percebeste logo ao que eu vinha... Mas não podes compreender porque fiquei com a tua dona...”
O cão ficara ainda mais atento, o olhar interrogador, insatisfeito...
“Ela controla tudo, sabes”, continuou o jovem. “Divorciada, sem filhos, muito dinheiro. E já chegou à idade em que as mulheres se estão nas tintas para as aparências, podem namorar com um tipo como eu, que sou solteiro desempregado, ainda por cima ambicioso. Olha para este magnífico sobretudo”, e mostrou a qualidade do tecido ao canino, que cheirou o casaco. “Boa matéria, foi ela que me comprou, belo presente...”
O homem recostou-se melhor no banco do jardim:
“Achas mal que receba presentes? Tu também dependes dela...”
O cão de novo tinha a língua de fora, como se concordasse...
“Gostei de a conhecer” disse o rapaz, recostando-se melhor no banco de jardim, perna traçada, gestos no ar. “Um dia, claro, vou-me embora... Ela vai chorar umas semanas e depois procura outro matulão como eu. Ou talvez nem chore. Aponta o dedo e diz que a porta é serventia da casa. Temos vinte anos de diferença e ambos sabemos que isto não é para casar. O ideal seria ela arranjar-me um emprego. Até esse dia, dá-me presentes”. Deixou o olhar no cão, mudou o semblante: “Não achas bem?"
Agora, fizera uma pergunta. O tom de voz mudara, tornara-se áspero. O cão apercebeu-se da transformação e olhou para o rapaz, à procura de pistas para compreender o motivo da transição. Depois, o canino distraiu-se, olhou para o lado e rosnou, na direcção do vazio. Houve uma pausa. Em vez do silêncio, surgia um rumor de passos. Do nevoeiro surgiram dois vultos; eram dois homens jovens, que também desciam o caminho asfaltado, no meio do parque público. Vinham a conversar. Aproximaram-se. Pararam junto ao rapaz do sobretudo. Dois skinheads.
Tinham aspecto ameaçador e rufião. Casacos de cabedal, correntes metálicas e tatuagens. Pararam em frente ao banco de jardim.
“É feroz, o rafeiro?”, perguntou o skin mais alto, apontando para o cão.
“Chama-se Átila, portanto, deve ser mau como as cobras”, respondeu o rapaz.
O segundo skin acocorara-se ao lado do animal. Começou a fazer-lhe festas no pescoço e na nuca.
“Parece manso”, disse.
Ficaram os quatro ali calados. Então, o segundo skin foi correr com Átila no relvado; disse que ia testar a velocidade do animal. O outro, o mais alto, que parecia ser o chefe, sentou-se ao lado do rapaz do sobretudo:
“Tu não trabalhavas naquela fábrica que fechou?”, perguntou o skin.
O rapaz fez um gesto, a dizer que sim.
“Eu também. Não te lembras de mim? Trabalhava na secção de polimento. Mas, na altura, usava cabelo comprido...”
“Ah, sim! Lembro-me... Pena a fábrica ter fechado... E, depois, arranjaste emprego?”
“Não! Quem é que hoje arranja emprego? Ando pra qui...Tu, é que tás a subir na vida, casaquinho à maneira...”
“Nem por isso...Tenho uma velhota por conta... É dona de uma escola privada e tem carro e narta”.
“Dá-te umas lições, a velha?”
“Nem por isso...”
“O cão é teu?”
“É dela. Eu só o vim passear.”
“É giro, o cão, e tem um nome porreiro!”
“A minha gaja disse uma vez que era o nome de um guerreiro que andou a espatifar o mundo e a quem chamavam o flagelo de Deus”.
“É sabichona, a tua gaja?”
“Pois, se tem uma escola...”
Átila e o outro skin tinham regressado. O cão arfava de contentamento, afeiçoara-se ao desconhecido e cheirava-lhe as calças e as botas.
“Parece que vai começar a falar, o sacana”, disse o skin, a apontar para o rafeiro.
Depois de dizer aquilo, o chefe levantou-se, espreguiçou-se:
“Tou cá a pensar nesse tal guerreiro”, disse ele, numa risada. “Se calhar o tipo tinha dignidade, porque já nessa altura o mundo precisava de espatifação”.
Dito isto, os skins foram-se embora, mas só se despediram do animal, com grandes festas no pescoço, no dorso e amigáveis palmadas na nuca do rafeiro.
Regressara o silêncio. O parque mergulhara numa espécie de intervalo, com a cidade imperceptível atrás da névoa densa e os pensamentos a fluírem sem nexo.
“E aqui estamos nós os dois sem termos para onde ir”, disse o rapaz, a falar sozinho.
E o cão gemeu um pouco, sempre a observar o humano; inclinou a cabeça, como se tivesse pena dele; abriu muito os olhos, como se quisesse dar-lhe força para tomar uma decisão.
“E tu aqui a perceberes tudo o que nós dizíamos...”, murmurou o rapaz.
E, depois, num sopro breve: “Vamos pra casa, Átila, meu flagelo”.
 
 
Conto antigo, talvez pedaço de uma novela, (gosto imenso dele, não sei porquê) e que publico aqui por ocasião do primeiro aniversário deste blogue
publicado por Luís Naves às 11:22

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Quarta-feira, 9 de Dezembro de 2009

É difícil falar do amor

Parece fácil falar de amor

E há outros temas bem mais urgentes

planeta a sufocar, crises emergentes

o mar a subir, o excesso de calor

 

Pensar nas paixões, quis eu supor

daria versos pouco exigentes

ideias banais, algo incoerentes

poesia sem chama e sem ardor.

 

Soube então o que falhara em entender:

a água passada é como um rio imenso

que se impõe ao presente, temível, denso

 

Um desgosto corre sempre assim, penso

e recordá-lo de menos é esquecer:

ter amado não é ter vivido, é ainda viver

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publicado por Luís Naves às 12:49

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Segunda-feira, 7 de Dezembro de 2009

O ar nocturno

Uma flor de gelo desliza

como acontece em sonhos,

flutua entre prédios soturnos

desce ravinas artificiais

sobe um instante na maré imaginária,

soprada nas sombras da sombra.

E a certo passo desiste.

Ainda no embalo tépido do vento,

antes de se deitar na terra,

dissolve-se no ar nocturno

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publicado por Luís Naves às 12:06

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